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O Tribunal Penal Internacional e a Constituição

20/10/2000
 
Isabela Piacentini de Andrade



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Artigo publicado no jornal "O Estado do Paraná", caderno "Direito e Justiça", em 01/10/2000

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Há cerca de dois anos, 160 países reuniram-se em Roma almejando criar um organismo internacional destinado a pôr um fim à impunidade que beneficiou muitos dos responsáveis pelas maiores barbáries já perpetradas contra a humanidade.
Em 17 de julho de 1998, a Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas aprovou o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, resultado do esforço conjunto de nações e ONGs de todo o mundo. O preâmbulo deste Estatuto reconhece que "neste século, milhões de crianças, mulheres e homens têm sido vítimas de atrocidades que desafiam a imaginação e chocam profundamente a consciência da humanidade. Esses graves crimes constituem uma ameaça para a paz, a segurança e o bem-estar da humanidade, não devendo ficar sem castigo, cumprindo adotar medidas no plano nacional e fortalecer a cooperação internacional."

O Tribunal Penal Internacional (TPI), ao contrário dos tribunais ad hoc como os de Ruanda e da ex-Iugoslávia, destaca-se por ser uma jurisdição internacional de caráter permanente. Sua competência abrange os crimes de genocídio, crimes de lesa-humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Será sediado em Haia, na Holanda, e composto por 18 juízes de nacionalidades diferentes. É válido ressaltar que esse Tribunal julgará indivíduos, e não Estados, o que coloca em xeque noções ainda defendidas por alguns internacionalistas de que somente os Estados são sujeitos de Direito das Gentes.

Embora instituto internacional, o TPI não atenta contra a soberania estatal. Os Estados-Partes continuam competentes para processar e julgar criminosos violadores dos direitos humanos. O Tribunal será complementar às jurisdições internas, só atuando em casos de omissão, ausência de imparcialidade, demora injustificada ou incapacidade do Estado. É princípio expresso no Estatuto a obrigação de cooperação entre os Estados-Partes e o Tribunal, a fim de possibilitar seu eficaz funcionamento.

Somente estarão submetidos ao TPI os Estados que aceitarem sua jurisdição. Atualmente, o Estatuto de Roma conta com 113 assinaturas e 21 ratificações – são necessárias 60 para sua entrada em vigor. O Brasil foi o 94º país a assinar o Tratado, em 7 de fevereiro deste ano, e o processo de ratificação ainda está em curso.

A incorporação do Estatuto de Roma ao direito interno brasileiro suscita dúvidas quanto à sua compatibilidade em relação à Constituição Brasileira de 1988, especialmente relevantes porque o Estatuto veda expressamente a possibilidade de sua ratificação com reservas (art. 120). As principais controvérsias baseiam-se em duas previsões polêmicas do Estatuto: a pena de prisão perpétua e a entrega de nacionais ao Tribunal.

Prisão perpétua: o artigo 77 do Estatuto de Roma prevê a possibilidade de aplicação da pena de prisão perpétua para crimes de extrema gravidade e segundo circunstâncias pessoais do condenado. Tal disposição confrontaria frontalmente com o artigo 5º, XLVII, b da Constituição Federal, que estabelece a impossibilidade de penas de caráter perpétuo.

A tese da incompatibilidade com a Constituição, entretanto, é contestada por juristas como Antônio Cachapuz de Medeiros, Tarciso Dal Maso Jardim e Sylvia Steiner (O que é o Tribunal Penal Internacional. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2000). Segundo esta autora, a previsão da pena de prisão perpétua pelo Estatuto de Roma resultou muito mais de uma tentativa de agradar a gregos e troianos. A inexistência da previsão da pena de morte teria levado a Comissão de Direito Internacional da ONU a incluir a pena de prisão perpétua como forma de "compensar" essa ausência, injustificável para os países assentados no sistema da common law, que defendiam ser a pena capital justa e necessária para dar credibilidade à Corte. Apesar da oposição dos países baseados na civil law (caso brasileiro), guiados por outra concepção de pena, venceu a corrente conciliadora, prevalecendo a previsão da pena perpétua em lugar da pena de morte. A prisão perpétua, portanto, figurou no Estatuto apenas como hipótese excepcional, sendo suscetível de revisão e redução.

O sistema constitucional brasileiro, apesar de proibir a prisão perpétua, admite a pena de morte em caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII, a da CF). O Código Penal Militar também prevê extenso rol de crimes militares em tempo de guerra puníveis com a morte (arts. 355 a 408) . Uma interpretação sistemática nos levaria a concluir que a vedação da prisão perpétua pelo nosso ordenamento não pode ser tomada em termos absolutos. Além disso, o Supremo Tribunal Federal adota o entendimento de que a proibição constitucional da pena de prisão perpétua aplica-se apenas em âmbito interno, não podendo restringir o legislador estrangeiro, muito menos o internacional. Esse raciocínio tem levado o Pretório Excelso a deferir extradições para países que adotam a pena perpétua, atendendo ao princípio da territorialidade da nossa lei penal (ver extradições nº 426 e 669.0). Tais argumentos conduzem à conclusão de que não há incompatibilidade real entre o Estatuto de Roma e a Constituição Brasileira no tocante à prisão perpétua. Essa vedação restringe apenas o judiciário interno, não se aplicando em nível internacional.

É ainda mister lembrar que o artigo 7º do ADCT diz que "o Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional de direitos humanos". Eventuais incompatibilidades deverão ser dissipadas, ainda que com sacrifício de normas internas, que não podem prevalecer sobre os princípios universais de defesa dos direitos humanos. Tal prevalência, aliás, é apontada na nossa Constituição (art. 4º, II).

Entrega de indivíduos ao Tribunal: A extradição é a entrega de um indivíduo de um Estado a outro para julgamento. É proibida pelo artigo 5º, incisos LI e LII da Constituição Federal nos seguintes termos: "LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei; LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político e de opinião".

O artigo 89 do Estatuto de Roma, em aparente conflito com nossa norma constitucional, prevê a entrega de nacionais para o Tribunal Penal Internacional. A entrega a que se refere o Tribunal, entretanto, é um instituto distinto da extradição. A fim de evitar controvérsias, o próprio Estatuto diferencia os dois institutos no art 102: "Por 'entrega' se entenderá a entrega de um indivíduo por um Estado ao Tribunal, em conformidade com o disposto no presente Estatuto; por 'extradição' se entenderá a entrega de um indivíduo por um Estado a outro, em conformidade com o disposto em um tratado, convenção ou no direito interno". A incompatibilidade, também neste caso, é aparente. Tarciso Dal Maso aponta que "não se trata do antigo instituto da extradição, que se reporta à entrega de uma pessoa de uma jurisdição soberana a outra. Trata-se da entrega sui generis, em que um Estado transfere determinada pessoa a uma jurisdição penal internacional que ajudou a construir" (obra citada, p. 31). O instituto da entrega é baseado no princípio da complementaridade e cooperação entre Estados-Partes e Tribunal, para que este realize um julgamento justo e imparcial.

Reconhecendo que as incompatibilidades do Estatuto de Roma com a Constituição Federal são apenas aparentes, a Proposta de Emenda à Constituição apresentada pelo Deputado Nilmário Miranda (PEC 203/2000) não prevê modificações substanciais no texto constitucional – relacionadas à prisão perpétua ou à extradição –, limitando-se a incluir, no artigo 5º da CF, um 3º parágrafo com a seguinte redação: "a República Federativa do Brasil poderá reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional nas condições previstas no Estatuto aprovado em Roma no dia 17 de julho de 1998." Na justificativa da Proposta, em tramitação na Câmara, o Deputado ressalta que "apesar de esclarecidos os pontos mais polêmicos, compreendemos mister que haja uma disposição constitucional a fim de melhor situar a questão da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, de forma a não restar qualquer dúvida em relação a sua pertinência com a legislação brasileira."

As pequenas dificuldades apontadas não deverão constituir obstáculo para que o Brasil dê mais esse enorme passo em favor da humanidade, ainda que a caminhada esteja apenas começando.

Fonte: Escritório Online


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