Como toda legislação codificada de qualidade, o Código de Processo Civil (CPC) divide-se em livros, cinco no total. Os três primeiros se referem aos três tipos de processos que nosso sistema processual consagra: o Processo de Conhecimento (Livro I), o Processo de Execução (Livro II) e o Processo Cautelar (Livro III). O Livro IV cuida dos Procedimentos Especiais e ali o Código agrupa ações que pretendem alcançar prestação jurisdicional de natureza declaratória, condenatória, constitutiva, mandamental ou cognitivo-executiva, ou seja, os modelos clássicos de expressão da jurisdição de natureza cognitiva. A matéria regulada no Livro IV deveria, em verdade, ter sido incluída como simples Capítulo do Livro I, logo abaixo dos capítulos referentes ao Procedimento Comum, ordinário ou sumário. Assim, em contraposição ao Procedimento Comum, e logo em seguida aos artigos que o disciplinam, deveriam estar os Procedimentos Especiais. Talvez por questão de melhor arrumação interna do Código, o legislador processual da reforma de 73 tenha optado por destinar um Livro à parte aos Procedimentos Especiais. O Livro V, por derradeiro, trata das Disposições Finais e Transitórias.
O entendimento sobre a divisão lógico-sistemática do Código de Processo Civil (CPC) é fundamental para que se o utilize de forma científica e adequada. De nada adianta abrir o Código sem qualquer cuidado sistemático e simplesmente começar a procurar o artigo que possa solucionar um determinado problema processual sem que o intérprete tenha noção exata a respeito do tipo de processo sobre o qual está trabalhando, qual é a pretensão do autor, qual o tipo de provimento jurisdicional que espera receber do juiz. Não é assim que o Código funciona. Os artigos que se encontram dentro do Livro II, que regula o Processo de Execução, não se prestam a ser aplicados em um processo cautelar, por exemplo. Os artigos que se encontram dentro do Livro III, que regula o Processo Cautelar, não servem para resolver qualquer problema de um processo de conhecimento. Como regra geral, problemas do processo de conhecimento devem ser resolvidos com base em artigos do Livro I; problemas do processo de execução, com base em artigos do Livro II; problemas do processo cautelar, com base em artigos do Livro III. O Livro IV, como se viu, deveria estar dentro do Livro I e por isso não é equivocado resolver problemas referentes a procedimentos especiais regulados no Livro IV com base em artigos do Livro I. Essa é a regra geral, que, como toda regra geral, comporta exceções. Uma dessas exceções é o artigo 598, por exemplo, que permite a aplicação subsidiária das disposições do Livro I (Processo de Conhecimento) ao Processo de Execução.
O Livro I acaba sendo uma espécie de “Parte Geral” do Código de Processo Civil, já que ali se regulam matérias que não são específicas do Processo de Conhecimento, sendo mesmo comuns aos três tipos de processo. Por exemplo, a regulamentação referente a atos processuais, prazos processuais e recursos, entre outros. Assim, é viável utilizar alguns artigos do Livro I para os demais tipos processos. Entretanto, e afora essas questões de ordem geral, que evidentemente se referem aos três tipos de processo, como definir quais são as disposições do Livro I que podem — ou não — ser aplicadas aos processos de execução e cautelar? Para isso, é preciso saber se: a) não existe alguma disposição específica no Livro II ou no Livro III; e b) a disposição que se pretende aplicar guarda relação de compatibilidade com o objetivo a ser alcançado. Se existir alguma disposição específica nos Livros II ou III, claro que é essa a disposição que deverá ser aplicada, sendo inviável a utilização de artigo do Livro I que regule de outro modo a matéria regulada de modo específico pela disposição dos Livros II ou III. Se não houver nenhuma disposição específica nos Livros II ou III, então há que se verificar se a disposição cuja aplicação é pretendida é compatível com a finalidade própria daquele tipo de processo.
Por exemplo: em uma execução por quantia certa contra devedor solvente, o oficial de justiça não consegue localizar o devedor para citação, recebendo sempre a informação, na casa do réu, de que ele já saiu ou não se encontra. Pergunta-se: cabe, nessa hipótese, a citação do réu por hora certa? Ou, em outras palavras, é possível aplicar o art. 227, do CPC, (Livro I, Processo de Conhecimento) ao Processo de Execução.
Como se viu, a primeira coisa a fazer é descobrir se existe alguma disposição específica no Livro II para o problema “o que deve fazer o oficial de justiça quando não encontra o réu para promover a sua citação”. Para esse problema no Processo de Conhecimento, a solução é a citação por hora certa, como quer o art. 227. Existe alguma disposição que solucione esse problema no Livro II? Existe: o art. 653 estabelece, de forma clara e específica, o que o oficial de justiça deve fazer quando não encontra o réu para a citação. E a solução ali preconizada não é a citação por hora certa — como acontece no Processo de Conhecimento —, mas, sim, o arresto de bens do devedor. Assim, a resposta à pergunta “cabe citação por hora certa no Processo de Execução?” deve ser entendida de forma mais ampla, como se fosse “cabe a aplicação subsidiária do art. 227 ao Processo de Execução?”. E a resposta, como se demonstrou, é negativa, diante do fato de existir disposição específica no Livro II. Essa é a solução pacificada na jurisprudência.
Entretanto, veja-se que essa argumentação vale apenas para o procedimento da execução por quantia certa contra devedor solvente, onde se insere o art. 653. E quando se tratar de execução de alimentos pelo rito procedimental da constrição pessoal (art. 733, do CPC), será possível a citação por hora certa do devedor? Para responder a essa pergunta, é preciso saber, como se viu, se a) não existe alguma disposição específica a respeito do tema no Livro II; e b) se o art. 227 guarda relação de compatibilidade com o objetivo a ser alcançado na execução de alimentos pelo rito da constrição pessoal.
Esse tipo de execução é aquele em que o devedor é citado para, em três dias, efetuar o pagamento, provar que já o fez ou justificar a impossibilidade de fazê-lo. Caso silencie, ou, então, caso o juiz não acolha a sua justificativa, o devedor poderá ser preso por até noventa dias. Veja-se que, no caso da execução por quantia certa contra devedor solvente, há solução específica no Livro II, isto é, não encontrado o devedor, o oficial de justiça procederá ao arresto dos seus bens (art. 653). Entretanto, na execução do art. 733, o objetivo não é expropriar bens do devedor para satisfazer o direito do credor, que, de resto, é o que anima a execução alimentícia de índole patrimonial (arts. 732 e 646, ambos do CPC). O objetivo da execução alimentícia pelo chamado “rito da constrição pessoal” é o de obrigar o devedor de alimentos, de forma coercitiva, por meio de sua prisão civil — autorizada pela Constituição (art. 5º, inciso LXVII) —, a satisfazer, rapidamente, as necessidades do credor de alimentos. O que está em jogo, aqui, é a subsistência do alimentando e, por isso, se autoriza a prisão do alimentante.
O Livro II não previu nenhuma solução específica para o problema “o que deve fazer o oficial de justiça quando não encontra o réu para promover a sua citação na execução de alimentos pelo rito da constrição pessoal”. Fosse execução patrimonial, repita-se, a solução seria o arresto. Mas para essa espécie de execução de alimentos não há solução específica no Livro II, o que autoriza, em princípio e em tese, a citação por hora certa do réu.
Para sair do “em princípio e em tese” e sustentar a aplicação do art. 227 na execução de alimentos pelo rito da constrição pessoal, resta saber se há alguma incompatibilidade entre ele e o objetivo a ser alcançado nesse tipo específico de execução (letras a e b, referidas acima). Note-se, entretanto, que essa disposição legal, que prevê a citação por hora certa no Processo de Conhecimento, é perfeitamente compatível com a finalidade da execução de alimentos pelo rito da constrição pessoal. O objetivo da citação nesse tipo de procedimento é fixar o início do prazo para que o devedor pague, prove que já pagou ou justifique sua impossibilidade de efetuar o pagamento. E a citação por hora certa em nada prejudica qualquer dessas três opções. Ao contrário, o prazo inicia-se sem qualquer prejuízo para o devedor — exatamente como no Processo de Conhecimento —, que pode perfeitamente optar por qualquer das alternativas que a lei lhe faculta. Assegura-se o contraditório e permite-se ao devedor que exerça a mais ampla defesa (dentro dos limites do processo executivo, claro), com todos os meios e recursos a ela inerentes, como quer a Constituição (art. 5º, LV).
E veja-se: se a citação por hora certa não vicia a regular formação da relação processual no Processo de Conhecimento e permite que se atinja a almejada certeza, que é o objetivo a ser alcançado no Processo de Conhecimento, com muito maior razão também não haverá de macular a relação processual no Processo de Execução, onde já se parte da certeza de que o autor é credor e o réu é devedor. Assim, e em outras palavras, se vale a citação por hora certa quando não se sabe quem está certo, o autor ou o réu, com muito mais razão tal modalidade de citação haverá de valer no processo executivo, quando já se sabe que o autor tem seu direito assegurado e o réu não cumpre suas obrigações. Do contrário, o credor de alimentos pode vir a ter a desagradável sensação de que “ganhou, mas não levou”, já que tem o seu direito a alimentos reconhecido em uma sentença judicial, mas não consegue fazer com que o réu pague porque o mesmo se furta à citação por oficial de justiça.
Por isso, seja porque inexiste qualquer disposição específica no Livro que regula o Processo de Execução, seja porque o art. 227 é absolutamente compatível com a finalidade da execução alimentícia pela constrição pessoal, pode-se sustentar, com firmeza, a possibilidade de citação por hora certa nesse tipo específico de execução de alimentos. De resto, deve-se assinalar que, na época atual, em que se quer resgatar o prestígio da Justiça e fazer do processo instrumento efetivo de realização do justo, o fato de se admitir possível a citação por hora certa na execução de alimentos pelo rito da constrição pessoal traduz a materialização da vontade do Judiciário em jamais compactuar com quaisquer manobras do devedor no sentido de ocultar-se do oficial de justiça, fugindo à obrigação alimentar. Além disso, evidencia a firme determinação do Judiciário em fazer cumprir suas decisões, sobretudo quando o caso envolva matéria prevista na Constituição da República — como é o caso da prisão civil do devedor de alimentos. Para tanto, basta haver juízes dispostos a transformar o processo em meio eficiente de se realizar a Constituição e a resgatar a noção de que as decisões judiciárias são forma concreta de positivação do poder.
Fonte: Escritório Online
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