Ignacy Sachs, um dos maiores entusiastas dos estudos da Cepal, atualmente morando em Paris, polonês de nascimento, cuja vida tem sido dedicada a estudar os problemas do Brasil, onde viveu por 14 anos. Professor da prestigiosa Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, Ignacy Sachs opina que passada a onda de privatização e redução do papel do Estado, está na hora de recuperar algumas das idéias de desenvolvimento nacional de décadas atrás.
As reformas neoliberais, do tipo das que foram implementadas até o fim na Argentina, levaram a um fenômeno inédito na História: uma tragédia de desenvolvimento, que resultou da mistura fatal de excessiva dependência de capitais externos, fé cega no Consenso de Washington e mau governo.
A falência da Argentina provou a falácia do Consenso de Washington, que continua a ser empurrado goela abaixo dos países do Sul.
A eleição do Lula quebrou o monopólio do poder pelas elites brasileiras. Agora, o governo Lula terá um enorme desafio pela frente: pensar numa estratégia de desenvolvimento diferente.
Não havendo modelos prontos, a tarefa mais urgente do Brasil é partir para um grande debate na sociedade sobre um projeto nacional, que vai dar lugar a polêmicas e controvérsias, mas isso indicara o caminho para onde ir, a construção de um projeto. O parâmetro é uma economia mista, na qual os mercados, devidamente regulados, têm um papel importante, mas um Estado enxuto, porém atuante, também. A visão de futuro é a de um desenvolvimento negociado entre quatro principais atores: os trabalhadores, os empresários, os poderes públicos e a sociedade civil organizada.
As três prioridades para o Brasil já foram definidas, emprego, emprego, emprego, havendo necessidade de repensar o futuro, lidando com o enorme desafio de gerar ocupações decentes.
O novo caminho a seguir decorre da necessidade de analisar-se a realidade com a qual temos de nos defrontar – a do capitalismo que foi reformado pelo sistema econômico neoliberal vigente e que não mais considera o pleno emprego como o objetivo principal e nem dá a necessária importância à Previdência Social, havendo necessidade de reatar-se com aquelas idéias do elo perdido, que continuam válidas.
Enquanto persistir essa globalização assimétrica, desigual, o desenvolvimento nacional dentro do Estado nacional continuará a ser a única possibilidade. Na Argentina, atualmente, há um processo de reflexão e propostas da maior importância. Um grupo de acadêmicos formulou o Plano Fênix (referência ao mito do pássaro que renasceu das cinzas), que é uma das coisas mais interessantes. O melhor resumo do plano é: 'Aprender a viver com o que temos'. Ou seja, significa desenvolver-se a partir do que se tem, a partir do mercado interno. É uma reflexão que será feita também no Brasil e que permite a um país reaver autoconfiança.
E preciso desenvolver-se um mercado interno vigoroso, que não significa desenvolvimento para dentro. É preciso superar o falso dilema entre crescimento voltado para fora e crescimento voltado para dentro. Os dois devem ser complementares. Num país continental como o Brasil, um mercado interno dinamizado em plena expansão pode reforçar a competitividade sistêmica das empresas brasileiras nos mercados externos.
Veja a integra da entrevista concedida a Revista ÉPOCA, Nº 231, desta semana, segunda-feira, 09 de dezembro de 2002.
Meia-volta, volver
Estudioso do Brasil propõe retomar o desenvolvimento a partir de idéias clássicas como ampliar o mercado interno
Guilherme Evelin
Durante sua visita ao Chile na semana passada, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, fez uma escala na sede da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Foi um tributo a uma das mais importantes escolas de pensamento econômico do Terceiro Mundo, de onde saíram economistas da estirpe de Celso Furtado. A Cepal conheceu seu auge durante os anos 50, quando inspirou a estratégia de industrialização baseada na substituição de importações e voltada para o mercado interno. Um dos maiores entusiastas dos estudos da Cepal é um morador de Paris, polonês de nascimento, cuja vida tem sido dedicada a estudar os problemas do Brasil, onde viveu por 14 anos. Professor da prestigiosa Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, Ignacy Sachs explica nesta entrevista por que julga que, passada a onda de privatização e redução do papel do Estado, está na hora de recuperar algumas das idéias de desenvolvimento nacional de décadas atrás.
PERFIL
Otávio Dias/ÉPOCA
Brasilianista
Fundou na França o Centro de Estudos sobre o Brasil Contemporâneo e o Centro Internacional de Pesquisas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
Bibliografia
Autor de sete livros publicados no Brasil. O mais recente é O Gato de Alice e Outras Crônicas - Pensando o Brasil às Margens do Sena
ÉPOCA - O senhor já fez uma comparação entre a falência da Argentina e a queda do Muro de Berlim. Pode explicar essa idéia?
Ignacy Sachs - As reformas neoliberais, do tipo das que foram implementadas até o fim na Argentina, levaram a um fenômeno inédito na História: uma tragédia de desenvolvimento, que resultou da mistura fatal de excessiva dependência de capitais externos, fé cega no Consenso de Washington e mau governo. Empresto tanta importância ao caso argentino porque acho que ele significa a derrocada de um paradigma muito influente nas últimas décadas. O socialismo real, como foi ensaiado no Leste Europeu, morreu com o Muro de Berlim. Já a falência da Argentina provou a falácia do Consenso de Washington, que continua a ser empurrado goela abaixo dos países do Sul.
ÉPOCA - Nesse contexto, o que significa a eleição de Lula no Brasil?
Sachs - A chegada à Presidência de um operário sindicalista é um evento de repercussão mundial, porque quebrou o monopólio do poder pelas elites brasileiras. Agora, o governo Lula terá um enorme desafio pela frente: pensar numa estratégia de desenvolvimento diferente.
ÉPOCA - Que estratégia é essa?
Sachs - Não há modelos prontos. A tarefa mais urgente do Brasil é partir para um grande debate na sociedade sobre um projeto nacional, que vai dar lugar a polêmicas e controvérsias. É difícil definir estratégias de desenvolvimento quando não se tem um projeto. A gente tem de saber para onde ir. O parâmetro é uma economia mista, na qual os mercados, devidamente regulados, têm um papel importante, mas um Estado enxuto, porém atuante, também. A visão de futuro que eu tenho é o de um desenvolvimento negociado entre quatro principais atores: os trabalhadores, os empresários, os poderes públicos e a sociedade civil organizada.
ÉPOCA - Que prioridades o senhor imagina para esse projeto nacional?
Sachs - As três prioridades para o Brasil já foram definidas. A primeira é o emprego, a segunda é o emprego, a terceira é o emprego. Temos de repensar o futuro, lidando com o enorme desafio de gerar ocupações decentes. Estamos exatamente no meio de uma situação descrita por Keynes durante a crise dos anos 30: pobreza no meio da riqueza. Há uma enorme riqueza de recursos e, apesar disso, há uma massa de pessoas que está em graus diferentes de exclusão, semi-exclusão, fome, quase-fome. Por isso, vale a pena recuperar algumas idéias dos anos 50 e 60.
ÉPOCA - Que idéias são essas?
Sachs - São idéias que foram contestadas pela contra-reforma neoliberal. Digo contra-reforma porque o capitalismo dos anos 45 a 75 era um capitalismo reformado, que considerava o pleno emprego como o objetivo principal e dava enorme importância à Previdência Social. Não era o capitalismo puro e duro que levou à crise dos anos 30 e suas conseqüências catastróficas. Esse capitalismo reformado foi contestado pela contra-reforma neoliberal, que diz que tudo aquilo que foi pensado antes deles não valia mais. Como estamos chegando ao fim desse interlúdio neoliberal, vai valer a pena botar entre parênteses uma grande parte do que foi dito, escrito e afirmado nos últimos tempos e, ao analisar a realidade com a qual temos de nos defrontar, reatar com aquelas idéias, que continuam válidas.
'As reformas neoliberais levaram a uma tragédia de desenvolvimento na Argentina, que resultou da excessiva dependência de capitais externos, fé cega no Consenso de Washington e mau governo.
O governo Lula terá agora um enorme desafio pela frente: pensar numa estratégia de desenvolvimento. A tarefa mais urgente é um grande debate na sociedade sobre um projeto nacional.’
ÉPOCA - Dê um exemplo de conceito a ser recuperado.
Sachs - Primeiro, a idéia de que, enquanto persistir essa globalização assimétrica, desigual, o desenvolvimento nacional dentro do Estado nacional continuará a ser a única possibilidade. Na Argentina, atualmente, há um processo de reflexão e propostas da maior importância. Um grupo de acadêmicos formulou o Plano Fênix (referência ao mito do pássaro que renasceu das cinzas), que é uma das coisas mais interessantes. O melhor resumo do plano é: 'Aprender a viver com o que temos'. Ou seja, significa desenvolver-se a partir do que se tem, a partir do mercado interno. É uma reflexão que será feita também no Brasil e que permite a um país reaver autoconfiança.
ÉPOCA - O senhor está defendendo um modelo acusado de promover a economia fechada, autárquica, inflacionária?
Sachs - Desenvolvimento a partir do mercado interno não significa desenvolvimento para dentro. É preciso superar o falso dilema entre crescimento voltado para fora e crescimento voltado para dentro. Os dois devem ser complementares. Num país continental como o Brasil, um mercado interno dinamizado em plena expansão pode reforçar a competitividade sistêmica das empresas brasileiras nos mercados externos.
ÉPOCA - Dinamizar o mercado interno significa também substituir importações, anátema para os liberais?
Sachs - Fizeram um processo falso contra a substituição de importações. No pensamento dos economistas da Cepal, a substituição de importações não era um objetivo. O objetivo era a industrialização. Dentro das condições internacionais adversas, dizia-se que era preciso dar mais ênfase à substituição de importações que às exportações. Agora, cada vez que a crise aperta, a substituição das importações volta à tona. O que é mais fácil: exportar um produto industrial complexo ou deixar de importar azeite-de-dendê da Ásia?
ÉPOCA - Na campanha presidencial, quase todos os candidatos deram ênfase à necessidade de aumentar as exportações para gerar mais empregos. Essa é uma visão errada?
Sachs - Não estou dizendo que não se deve exportar mais. É óbvio que o Brasil precisa sair do sufoco que representa o problema da insuficiência de divisas. Trata-se de aproveitar as melhores oportunidades dos dois lados. Mas é preciso ver a realidade como ela é. Nove entre dez brasileiros trabalham para o mercado interno. Além disso, quando o Brasil se orgulha, com razão, das exportações da Embraer, tem de tomar ao mesmo tempo o cuidado de olhar qual é o conteúdo de importação desse avião. Uma parte importante dos aviões continua importada. E estamos falando do caso mais bem-sucedido de uma exportação de alta tecnologia. A maior parte dos países do sul que figuram hoje como exportadores de alta tecnologia são, na realidade, plataformas de montagem, maquiadoras. A parcela de valor agregado que fica no país é muito menor que a que fica na estatística de exportação. Continua verdadeiro o problema do impacto desigual do progresso tecnológico entre o centro e a periferia, um ponto central nas análises de Celso Furtado.
'Se você põe uma camisa-de-força através do superávit primário, outra através da Lei de Responsabilidade Fiscal e continua a depender de capitais externos erráticos, fica difícil administrar a situação.
Roberto Stuckert Filho/Ag.O Globo
Lula tem de negociar outro modelo de globalização com as instituições internacionais. E o FMI tem de mudar sua cabeça, nem que seja pelas evidências das catástrofes que está produzindo no mundo.’
ÉPOCA - Quais são as chances de um governo Lula dar certo?
Sachs - Sou otimista, mas também penso que há obstáculos sérios. Destaco o tipo das condicionalidades que continua a orientar a atuação dos organismos internacionais. Elas vão contra os interesses dos países em desenvolvimento. Se você põe uma camisa-de-força através do superávit primário, outra através da Lei de Responsabilidade Fiscal e continua a depender de um fluxo errático de capitais estrangeiros, fica muito difícil administrar a situação. Quando o FMI foi criado por Keynes, a idéia central era de que deveria fornecer dinheiro quando um país estivesse em dificuldades. E não apertar mais o país. Estamos assistindo a exatamente o contrário.
ÉPOCA - Mas o governo Lula vai ter de conviver com essas instituições.
Sachs - O que não significa não negociar outro modelo de globalização. O Fundo tem de mudar sua cabeça. Não sei se isso acontecerá graças à eloqüência da equipe de Lula ou graças às evidências das catástrofes que está produzindo pelo mundo. A responsabilidade dos países industrializados também é muito ampla. As conclusões da tragédia argentina devem ser tiradas não só na Argentina e no Brasil, mas, antes de mais nada, nos países do Norte.
Fonte: Escritório Online
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