* Este trabalho foi apresentado pelo autor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná, na Disciplina de Direito Constitucional, Professor Dr. Jorge de Oliveira Vargas
"É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos; tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades requeridas, pelas legislaturas ordinárias".
Artigo 178 da Constituição de 1.824.
Índice
Introdução
A rigidez constitucional
O controle da constitucionalidade das leis e suas formas
O vício de iniciativa em projeto de lei
Retrospecto jurisprudencial do STF
A mesma questão em esfera Estadual e Municipal
Conclusão
Introdução
O presente trabalho visa, sem esgotar a matéria, analisar o vício de iniciativa em projeto de lei em face do controle da constitucionalidade das leis brasileiras. Esta breve análise acadêmica tem como objetivo expor evolução histórica do nosso atual controle de constitucionalidade repressivo em abstrato, confrontando-os com os princípios constitucionais que regem o ordenamento jurídico nacional.
A rigidez constitucional
O controle da constitucionalidade é conseqüência de uma Constituição rígida como a CF/88, que para sua alteração ou revisão necessita de um processo sui generis em relação à modificação das leis ordinárias ou complementares. Isso acaba por colocá-la num patamar mais acentuado em relação às outras normas, ou seja, resulta na superioridade da lei constitucional.
A conseqüência desta hierarquia é validade das leis infraconstitucionais que não se coadunam com seu regramento, e nesta sucinta visão, bastaríamos dizer que um ato normativo quando foge das disposições constitucionais vigentes, e que contrarie suas regras, é inválido.
Cabe, porém, ressaltar que a característica rígida de uma Constituição não tem qualquer relação com a existência de um núcleo insuscetível de abolição de preceitos, isto é, com as chamadas cláusulas pétreas. Rigidez, conforme dito anteriormente, tem relação, apenas, com a exigência de um procedimento diferenciado, mais dificultoso, para a modificação do texto constitucional.
E em se tratando de BRASIL, a rigidez constitucional não tem também qualquer relação com estabilidade da Constituição, in casu a Constituição Britânica há várias décadas não sofre emendas em seu texto, no entanto, a CF/88 há pouco mais de uma década foi alterada por 39 emendas.
O controle da constitucionalidade das leis e suas formas
Dado que a rigidez constitucional infere a sua superioridade sobre as demais leis, percebemos que para que uma lei seja válida e aceita em nosso ordenamento ela deve ser declarada constitucional, ou seja, deve estar isenta de controvérsias com a Carta Magna.
A lei ao ser publicada é revestida de uma presunção de constitucionalidade, e enquanto esta presunção não for contestada, ela é válida e deve ser aplicada. De modo que, enquanto a lei não for invalidada por inconstitucional para todos os casos aos quais se aplique e não apenas a um caso concreto, segundo admite Hans Kelsen[1] “até este momento, a lei é válida e deve ser aplicada por todos os órgãos aplicadores do direito”.
Por isso, o controle da constitucionalidade das normas, tem como principal objetivo apurar se a matéria legal está de acordo com os preceitos constitucionais e não obstante, verificar se a forma, como se originou a lei, seguiu as regras dadas pela Carta Magna.
Desta maneira podemos falar em controle material e controle formal. Material porque incide sobre o conteúdo da norma e da sua validade no que tange ao seu texto estar ou não de acordo com os preceitos fundamentais. Formal porque examina se a lei foi elaborada em conformidade com a Constituição, se houve observância das formas estatuídas e se a regra não fere uma competência constitucionalmente deferida.
O controle formal, tem mais a ver com o tema central desse trabalho e é nele que vamos nos concentrar, deixando de lado a conceituação do controle material. Porém, antes de adentrarmos sobre a relação do controle formal com o vício de iniciativa de projeto de lei, cabe dizer que o controle de constitucionalidade pode ser feito em dois momentos: antes e depois de sua publicação.
Como dito anteriormente, ao se publicar uma lei (ou ato normativo) ora presume-se constitucional. Entretanto esta constitucionalidade poderá ser contestada de forma repressiva (controle repressivo) por um órgão competente (juiz/tribunal) que decidirá sobre a sua validade, caso contrário, a norma será abolida como inconstitucional, sendo invalidada na forma prevista na Constituição.
O controle repressivo pode ser dar por via de exceção (controle concreto/Juiz) no curso de um pleito judiciário cuja eficácia de invalidação será inter partes, ou pode ser por via de ação (controle abstrato/STF) por meio de ação direta de inconstitucionalidade, cuja eficácia de invalidação será ex tunc e erga omnes, salvo as hipóteses previstas no artigo 27 da Lei 9.868/99 onde permite-se a restrição dos efeitos e da eficácia.
Antes, porém, de sua publicação a lei pode sofrer o controle de constitucionalidade (controle preventivo) quando no curso do processo legislativo pela CCJ – Comissão de Constituição e Justiça ou pelo veto do Chefe do Poder Executivo que, motivadamente, explicará as razões de impugnação à norma.
Considerando estas observações sobre o controle da constitucionalidade das leis, fácil fica entender a sua inconstitucionalidade quando emanada de vícios formais.
O vício de iniciativa em projeto de lei
Não seria possível falar em vício de iniciativa em projeto de lei, sem que antes examinássemos os tipos de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos, em especial o controle formal do tipo repressivo in abstracto.
Isto porque, o vício de iniciativa suscita a inconstitucionalidade da norma por ser ela originada de um poder incompetente constitucionalmente.
No Brasil, a iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos na Constituição e ressalvados os casos de competência privativa.
É dentro desta esfera de competência privativa que uma lei pode ser declarada inconstitucional, se sua propositura for iniciada por quem não tem competência originária e, como vimos anteriormente, temos a inconstitucionalidade formal por ferir uma delegação constitucionalmente deferida.
Com efeito, a pergunta que se faz é se a sanção do Chefe do Executivo supre a falta de iniciativa, ou seja se a matéria de que se trata o texto legal, embora não tenha sido iniciado por quem lhe era competente, tem sua validade sanada pela sanção do Presidente da República, quando norma federal; do Governador do Estado, quando norma estadual ou; do Prefeito, quando norma municipal?
A primeira conclusão que se pode tirar é negativa, ou seja a sanção não supre ou convalida a falta de iniciativa. Mas em nossa história isto nem sempre foi assim.
Retrospecto jurisprudencial do STF
A CF/46 em seus artigos 67 e 70 estabeleciam as regras de iniciativa e sanção das leis e que hoje se repetem na CF/88, embora de uma forma mais aperfeiçoada e expressa. Na década de 60, o STF entendia que, embora houvesse a falta de iniciativa, a sanção do Chefe do Executivo no projeto de lei supria essa ausência por ser a lei um ato complexo, e que por sua vez só se tornaria perfeito mediante o concurso de vontades dos órgãos, neste caso, a Casa Legislativa e a Executiva.
Entendiam na época que se configuravam duas vontades, no procedimento legislativo, para a formação do ato complexo em que se consubstancia a lei, assim o Executivo, em lugar de tomar a iniciativa da confecção da lei, externava sua vontade ao sancioná-la, ou seja, independente da ausência de iniciativa, uma vez não havendo o veto do Executivo, mostrava seu apoio e ratificação ao ato do Poder Legislativo.
Segundo o Ministro Luiz Galloti [2] , “Deixando de vetar, o Presidente da República tacitamente sancionou a lei, nos termos do citado art. 70 da Constituição, aprovou-se, assim, já não se pode argüir a falta de iniciativa em relação aquilo que veio aprovar. Parece-me que essa concordância, embora tácita, supriria a iniciativa, se exigível, dar-se-ia a posteriori o que, a rigor, se deveria ter dado a priori”.
Outros Ministros da época apoiavam esta tese defendendo que aquiescência do Chefe do Executivo e a ausência de veto supria a falta de iniciativa. Isto é, não vetando a lei, o Executivo ratificava a vontade do Legislativo, ao sancioná-la.
Logicamente haviam discordâncias, no sentido de que a inobservância da forma procedimental acarretava em nulidade da norma ou até mesmo a inexistência do texto promulgado. Entretanto, embora as objeções fossem brilhantes e eruditas, visavam apenas à essência formal e por fim preponderou o entendimento de que a lei resultava na cooperação e colegislação, podendo considerar-se em suas fases distintas, como produto da emanação de Poderes, para a verificação indispensável das regras elaborativas, integrantes de sua existência e autenticidade, em que embora distintos os atos que lhe atestam inteireza, nem por isso levava-se ao rigorismo formalístico a ponto de ferir de morte, pela eiva da inconstitucionalidade, a lei; vista em sua feição colegislativa, se, como na espécie, demandando de um requisito exigido a priori do Poder Executivo, que lhe faltara na tramitação legislativa, vem a ser completado, aditado e inserido ao diploma legal, a posteriori, tacitamente, com toda a energia volitiva ratificadora, que a sanção exprime eloqüentemente. [3]
Em função de reiteradas decisões no sentido de que o vício de iniciativa era suprido pela sanção do Chefe do Executivo, como ocorreram nos processos RMS 9.619/62, RMS 9.628/63 e RMS 10.806/63, o STF assim decidiu com base nesses precedentes, em 16 de dezembro de 1963 a Súmula nº 5:
A SANÇÃO DO PROJETO NÃO SUPRE A FALTA DE INICIATIVA DO PODER EXECUTIVO.
Fatalmente a Súmula nº 5 sobreviveria em nosso ordenamento jurídico após a CF/67 com a alteração dada pela E.C. nº 1/69, precisamente no seu art. 57 que veio instituir a competência exclusiva de iniciativa de leis pelo Chefe do Executivo, nas hipóteses enumeradas por seus incisos, desta forma tornando a letra da Constituição mais forte que a decisão sumulada do STF.
Não obstante a nova regra constitucional, o próprio STF cancelou a referida súmula no julgamento da RP 890/74, cuja matéria tratava-se de vício de iniciativa por parte do Poder Legislativo ao pretender emenda a Lei 2.085-A/72 do antigo Estado da Guanabara, sendo o teor desta norma uma das hipóteses previstas na E.C. nº 1/69.
Por óbvio, a Súmula nº 5 não poderia opor-se a uma determinação constitucional, que tratou, não só, de melhorar a redação da norma anterior da CF/46, como também de impor uma vedação expressa, dirigida direta e unicamente ao Poder Legislativo.
Esta mesma “vedação” foi mantida na CF/88 em artigo 61 § 1º e a alterações introduzidas pelas E.C nº 18/98 e E.C. nº 32/01, desta vez alterando a competência exclusiva por privativa, tão somente para reforçar a idéia de restrição.
Ao longo dos últimos anos, a questão do vício de iniciativa restou-se pacificada no STF bem como nos tribunais superiores, quando nas questões discutidas em via de exceção, no sentido de que, ao contrário da Súmula nº 5, a sanção do Chefe do Executivo não mais convalida a falta de iniciativa, além impor a não obrigação do Executivo em cumprir a lei impugnada.
As recentes decisões apontam novo direcionamento, no sentido de que a propositura de lei emanada de poder incompetente, além de resultar no malogro da norma por ser inconstitucionalmente formal, é inconstitucionalmente material por violar o princípio de reserva da administração e por ofender a tri-partição dos poderes, como se pode notar recente na ADI 2.115/01 do rel. Ministro Ilmar Galvão.
Percebemos, portanto, que a aquela preocupação, essencialmente formal das decisões contrárias do STF, na década de 60, ganhou novo contraste nos tempos atuais pelo fato de que a redação constitucional vem diretamente decretar o poder de iniciativa reservado do Chefe do Executivo em determinadas matérias.
A mesma questão em esfera Estadual e Municipal
Parece certo que, o que vale em âmbito federal quanto à iniciativa de leis, serve também paras as esferas estaduais e municipais. Muito embora o texto constitucional fale em Presidente da República, ao invés de Chefe do Executivo, isto não significa que a regra não se extende a estes entes da federação.
Não poderia ser de outra forma em se tratando que os Estados e os Municípios regem-se por Constituições, leis orgânicas e leis que adotarem, sempre observando os princípios da Carta Magna. Ou seja, por simetria, esse entes também devem seguir as regras do processo legislativo da CF/88, bem como os pressupostos formais de elaboração das leis determinados pela Lei Complementar 95/98 e alterações posteriores.
Embora incontroverso este tema, a realidade parece ser diferente nos Estados e Municípios. Tanto é que o STF ainda recebe com freqüência ADINs no sentido de decretar a invalidade de leis por vício de iniciativa.
Como ilustração, podemos citar o caso da ADI 1.201/94, relatado pelo Min. Moreira Alves, cuja decisão é no sentido de que é inconstitucional a norma iniciada por membro da Assembléia Legislativa, em matéria privativa do Governador do Estado, reforçando que as normas básicas de processo legislativo nas hipóteses de iniciativa reservada devem ser observadas pelos Estados-membros.
Conclusão
Vimos que a questão do vício de iniciativa, ainda que por algum tempo veio sendo rechaçada em virtude de cunho meramente formal, sempre foi vista como uma ofensa a Constituição e a ausência de veto não teria o efeito de convalidar este ato complexo de elaboração da lei.
Quando na vigência da Constituição de 1946, não se falava em inconstitucionalidade formal da norma por vício de iniciativa, porque o próprio texto constitucional carecia de ênfase ao disciplinar a iniciativa reservada.
Após a reforma de 69 isto não mais seria possível, uma vez que o texto constitucional tratou de combater isto, declarando expressamente em linguagem mais clara a competência em iniciar projetos de lei sobre determinadas matérias.
Conclui-se assim que uma norma para ser válida têm que ser constitucional em dois momentos: na sua formação, considerando a sua origem no poder competente (formal) e na sua matéria, considerando sua adequação a Carta Magna.
Notas do texto:
[1] Hans Kelsen, Reine Rechtslehre, zweite, vollstaending neu bearbekitete und erweiterte Auflage 1960. Win, p. 278
[2] STF – RMS 9.628/63. Fl 299
[3] STF – RMS 9.628/63. Fl 301.
Base bibliográfica e fonte do trabalho:
Supremo Tribunal Federal, Repertório de Jurisprudência – www.stf.gov.br
Senado Federal, Base de Legislação – www.senado.gov.br
Presidência da República, Casa Civil – Revista Jurídica Virtual – www.planalto.gov.br
Bonavides, Paulo in “Curso de Direito Constitucional”. 11ª Edição. Malheiros . páginas 267 a 310.
Fonte: Escritório Online
|