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Aspectos históricos da responsabilidade civil médica

15/06/2003
 
Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas



Sumário: 1. Introdução 2. O Direito Romano 3. A influência grega 4. O Direito árabe 5. Origens no Direito europeu: França e Espanha 6. A evolução no Direito brasileiro 7. Conclusões 8. Referências bibliográficas


1 Introdução


Para uma maior compreensão dos diferentes aspectos que envolvem a responsabilidade civil, e mais precisamente a responsabilidade civil decorrente do exercício profissional da atividade médica, acreditamos extremamente necessário expor, em breve análise, a evolução histórica da valoração e reparação do dano, para conhecer suas origens e sua situação nos dias atuais.

Não há como falar na história da vida quotidiana da humanidade sem falar na luta pelo conhecimento médico, para curar doenças que sempre estiveram presentes. Para os mais jovens, nascidos em regiões desenvolvidas, é difícil acreditar que até poucas décadas atrás, o cidadão comum morria por doenças agora consideradas de fácil tratamento, como a tuberculose ou a pneumonia. A expectativa média de vida era consideravelmente mais baixa, uma vez que os meios disponíveis para o combate às doenças eram precários e, por vezes, empíricos.

A arte da medicina, nos primórdios da civilização, era essencialmente artesanal. A cura praticada era vista como um dom divino, até porque pouco se conhecia da anatomia e da fisiologia humanas.

Os métodos e rituais de cura não sofriam questionamentos, e os médicos eram reverenciados tal qual verdadeiros sacerdotes. Em contrapartida, o insucesso também lhes era cobrado na mesma proporção, pelo que a história da responsabilidade civil por vezes se confunde com o próprio desenvolvimento da reparação do dano médico.

A valoração médica do dano corporal não aparece como tal na História até o Século XVI, quando se passa a exigir nas codificações legais de forma explícita a participação pericial médica nos procedimentos jurídicos, o que se confunde com a própria história da medicina legal.

Sem embargo, desde as origens do homem e da medicina, existiu a necessidade constante de se realizar uma adequada avaliação do dano sofrido por um indivíduo, com o fito de estabelecer a responsabilidade do culpado, e determinar qual o castigo que deveria sofrer, ou o valor de pagamento a que estaria obrigado a satisfazer.

O primeiro documento histórico, ainda que incompleto, conhecido sobre o tema é a Ley de Ur Nammu, escrita em sumério, mais conhecida como as Tábuas de Nippur (ano 2050 a.C.) Este é o documento mais antigo que se conhece, e constitui a base dos demais códigos que existiram ao longo da evolução da história conhecida da civilização humana, ainda que, à medida em que esta foi se desenvolvendo, estes foram se refinando, embora sempre refletindo o princípio da reparação proporcional ao valor da perda.

Sem dúvidas, se pode afirmar que a história da reparação do dano causado por erro médico começa a partir da existência do Código de Hamurabi, cuja data mais admitida como provável é o ano 1750 a.C. É praticamente uma cópia das Tábuas de Nippur, onde se percorrem todos os aspectos da vida civil, tratando em seus artigos 196 a 201 da matéria relativa à reparação do dano físico, que ocorreria segundo a Lei de Talião (também presente na Lei de Moisés, a seguir exposta), ou por meios de reparação que dependeriam da situação social da vítima.

Miguel Kfouri Neto leciona[1] :

“O primeiro documento histórico que trata do problema do erro médico é o Código de Hamurabi (1790-1770 a.C.), que também contém interessantes normas a respeito da profissão médica em geral. Basta dizer que alguns artigos dessa lei (215 e ss.) estabeleciam, para as operações difíceis, uma compensação pela empreitada, que cabia ao médico. Paralelamente, em artigos sucessivos, impunha-se ao cirurgião a máxima atenção e perícia no exercício da profissão; em caso contrário, desencadeavam-se severas penas que iam até a amputação da mão do médico imperito (ou desafortunado). Tais sanções eram aplicadas quando ocorria morte ou lesão ao paciente, por imperícia ou má prática, sendo previsto o ressarcimento do dano quando fosse mal curado um escravo ou animal.

Evidencia-se, assim, que inexistia o conceito de culpa, num sentido jurídico moderno, enquanto vigorava responsabilidade objetiva coincidente com a noção atual: se o paciente morreu em seguida à intervenção cirúrgica, o médico o matou – e deve ser punido. Em suma, naquela época, o cirurgião não podia dizer, com uma certa satisfação profissional, como o faz hoje: a operação foi muito bem-sucedida, mas o paciente está morto.

Se essa era a lei – prossegue Avecone -, pode-se imaginar com que serenidade o médico se preparava para uma cirurgia, com os meios de que então dispunha. Por óbvio, só operações de extrema simplicidade eram praticadas, também porque a anatomia era muito pouco conhecida.”

Por sua vez, Guilherme Martins Malufe[2] menciona que:

“O primeiro documento histórico que faz referência ao erro médico é o Código de Hamurabi (1790 – 1770 a. C.), que trazia também algumas normas sobre a profissão médica na época.

O Código dizia, por exemplo, que nas operações difíceis de serem realizadas, haveria uma compensação pelo trabalho. Por outro lado, era exigida muita atenção e perícia por parte dos médicos, pois caso algo saísse errado, penas severas eram impostas a eles.”

Três eram as situações indenizatórias mais comuns, a saber:

- O homem livre, segundo a Lei de Talião (olho por olho, dente por dente);

- O campesino (normalmente miserável), cuja reparação aconteceria através de um valor ou quantidade de bens fixada por um juiz;

- O escravo, mediante preço proporcional ao seu custo.

A Lei de Moisés abrange um período muito amplo, que vai desde o ano 1500 até o ano 600 a.C. Ela contém em seu capítulo XXI do Êxodo, v. 18 e seguintes, espaço dedicado especificamente à reparação do dano corporal, através do procedimento conhecido como a Lei de Talião, assim como no Código de Hamurabi, já que praticamente coexistentes em países vizinhos, que durante mais de cinco séculos mantiveram em comum guerras, compra e venda de escravos, práticas cotidianas corriqueiras, etc., e até aproximadamente o ano 1000 a.C. não conheceram a indenização fixada por juiz, em quantidade determinada.

Nesta época, o castigo para o médico em caso de resultados adversos ou de má prática era superior ao preço que receberia pelo êxito. Assim, como exemplo, se por uma cura de um homem livre, pela qual receberia dez moedas de prata, obtivesse maus resultados, suas mãos seriam cortadas. Em tratando um escravo, e este ficasse inutilizado ou viesse a falecer, estaria obrigado a dar outro escravo.

Durante este grande período de tempo em que vigiu a Lei de Moisés, outros manuscritos também foram criados, em diferentes culturas, mas acabaram sendo esquecidos no decorrer dos séculos. É o caso das Tábuas de Bognazkeni, datado do ano 1290 a.C., que traz várias referências à reparação das lesões.

Uma tentativa de codificação dos dados do período é a Michna. De origem judia, a Michna cita várias leis que não são privativas ou originárias deste povo, posto que este mesmo documento aparece com nomes distintos nos povos vizinhos, o que é natural, uma vez que em todos havia costumes semelhantes.

Sua décima lei trata do Nezikin, ou Rhalabah (em hebraico), que significa danos, na qual são expostas cinco situações indenizatórias, nesta ordem:

- Primeiro se refere ao “NEZE”, ou a reparação do dano propriamente dito (lesão), que varia segundo se trate de um dano temporário ou permanente. Apenas quando definitivo, se imporia o uso da Lei de Talião[3] .

- A dor física, a chamada “TSAOR”, forma parte do método para estimar o valor do dano corporal.

- A cura, ou o período de cura – o chamado “RIPPUI” – também era considerado como parte integrante do dano, já que a enfermidade seria conseqüência das violências sofridas, razão pela qual o devedor deveria reparar os gastos dispendidos com a cura, e a perda de trabalho durante este período.

- O “CHEVET”, ou tempo perdido, também era reconhecido como uma forma de lucros cessantes, e era reconhecido na codificação o direito à indenização por tal período.

- A humilhação sofrida, a honra atingida, conhecida como “BOCHET” não era omitida do cálculo da reparação. Se tratava do que é atualmente chamado de prejuízo ou dano moral.

Todas estas situações poderiam ser exigidas pela vítima, mas nem todas as vítimas eram iguais, posto que ao escravo não era permitido pleiteá-las em sua totalidade:

- As crianças menores de 10 anos que se lesionassem obteriam uma indenização que seria dividida entre elas e seus possuidores.

- O trabalhador surdo-mudo ou com deficiência física que sofresse lesão, sempre era considerado como vítima prejudicada, e era ressarcida.

- O escravo nada recebia, toda e qualquer indenização iria para seu proprietário, já que o escravo não possuía “honra”. Acaso ficasse surdo em decorrência do dano, seu proprietário era ressarcido em seu inteiro valor.

Assim mesmo, a reparação do dano se dava segundo estes critérios:

- O homem livre não tinha preço.

- O ressarcimento das lesões sofridas ao longo do tempo era independente umas das outras, sendo diferente a depender da forma de solicitação: se o pedido reparatório era feito após cada lesão, elas eram indenizadas de forma independente; se apenas após o último dado era efetuado o pleito, se aplicava uma fórmula para indenização levando em consideração o conjunto dos danos.

- Se levava em consideração a capacidade de ganhos (a perda futura pela não assunção de trabalhos futuros) e da capacidade de trabalho (a perda por deixar de trabalhar).


2 O Direito Romano


A Responsabilidade Civil como hoje a conhecemos recebeu grande influência do Direito Romano. Foi em Roma que se solidificou a idéia de que a vingança privada não deveria ter lugar na vida em sociedade, cabendo ao Estado o poder – e mais – o dever de tutelar as relações interpessoais, disciplinando a indenização devida pelos danos causados por um particular a outrem.

Não se excluiu de todo a punição retributiva. A diferença passou a ser a permissão ou não do Estado para que pudesse ser aplicada.

Miguel Kfouri[4] descreve de forma bastante elucidativa a maneira como o assunto era tratado em Roma. É interessante perceber a riqueza e a profusão de textos legais preocupados com a matéria da responsabilidade civil e da reparação do dano.

“A Lei Cornélia estabelecia uma série de delitos relacionados à prática da profissão médica e as penas que deveriam ser cominadas.

Entretanto, com a lex Aquilia de damno, plebiscito posterior à Lei Hortênsia, do século III a.C., formulou-se um conceito de culpa, bem como fixaram-se algumas espécies de delitos que os médicos poderiam cometer, como o abandono do doente, a recusa à prestação de assistência, os erros derivados da imperícia e das experiências perigosas.

Como conseqüência, estabelece-se a obrigação de reparar o dano, limitando-o ao prejuízo econômico, sem se considerar o que hoje se define como dano moral.

Quem matasse um escravo ou animal alheio seria condenado a pagar o mais alto valor que tivesse tido no ano anterior ao delito; quem tivesse ferido um escravo ou um animal alheio, como também destruído ou deteriorado coisa corpórea alheia, deveria pagar ao proprietário o mais alto valor que o objeto tivera nos 30 dias precedentes ao delito.

Para intentar a actio legis Aquiliae, era necessário: a) que o dano tivesse causado injuria, isto é, contrariasse o direito; b) uma falta positiva (in committendo). Deixar o escravo alheio morrer de fome, por constituir culpa in omittendo, não gerava responsabilidade.

Qualquer falta imputável ao autor era suficiente: in lege Aquilia et levíssima culpa venit; c) um dano corpori corpore datum – o dano deveria ter sido causado por um contato direto do corpo do autor com o da vítima.”

E arremata:

“Na Lex Aquilia encontram-se os primeiros rudimentos de responsabilidade médica, prevendo a pena de morte ou deportação do médico culpado de falta profissional. Nas obras de Plínio, todavia, deparam-se reclamações de impunidade médica, tendo em vista a dificuldade, já àquela época, das tipificações legais.

Afirmava Ulpiano (Dig. 1, 18, 6, 7) que, ‘assim como não se deve imputar ao médico o evento morte, deve-se imputar-lhe o que houver cometido por imperícia’. Há mais de 1.500 anos, já se cogitava da imperícia do médico, que se tornava responsável pelos danos que viesse a causar ao paciente por falta de habilidade ou conhecimentos.”

É normal crer que a preocupação era exagerada, em face dos costumes “bárbaros” da época. Entretanto, os romanos já haviam percebido a necessidade de estabelecer regras de convivência, até mesmo como princípio de garantia de seu sistema de governo, tornando o Direito um dos sustentáculos da República.

A idéia da medicina enquanto ciência precisou superar conceitos e crenças há muito enraizadas. O desenvolvimento romano trouxe benefícios culturais em todas as áreas do conhecimento humano existente à época, inclusive no que tange à saúde. Foi nesta época, que coincide com a expansão do império, que a medicina começou a ganhar contornos profissionais, modificando-se a forma como a população encarava os seus praticantes.

Em Roma, se produz um importante desenvolvimento legislativo no ano 451 a.C., ao se introduzir claramente a sanção penal frente aos casos de lesões pessoais, sendo valorados elementos como o estado físico do lesionado, a qualificação pessoal, os gastos médicos, a noção de incapacidade temporária, etc., cuja tradição perduraria até a edição do Código Napoleônico. Fundamentalmente representado por:

- A Lei das XII Tábuas. Na Tábua VIII desta lei foram contemplados os seguintes artigos:

Artigo 2: admite a Lei de Talião sempre e quando não haja transação.

Artigo 3: o homem livre vale o mesmo que o escravo quando a lesão que sofre é uma fratura. Se esta não for uma fratura, o homem livre não tem preço.

Artigo 4: tratava sobre o prejuízo da honra.

- A idéia Aquiliana, que perdurará até o século XIX (Napoleão), dizia que não havia preço para o homem livre (ao contrário do escravo, que podia ter seu valor medido em moedas), e ter-se-ia que indenizá-lo por preço justo (como acontece em nosso Código Civil), sem entretanto existir uma “tabela” definida: era o lesionado quem estabelecia o valor da lesão, e o juiz decidia se o valor era justo ou não. Ainda assim, o fato doloso valia o dobro que o culposo.

Poucos textos sobreviveram a esta época. Foi a obra de Justiniano, depois do modernismo da Lei Aquília, a que recompilou, codificou e promulgou a legislação da época através do Corpus Juris Civilis. Dentro dos livros que compunham este tratado, o Digesto é o livro que traz a matéria civil, e nele se indica a forma de valoração do prejuízo patrimonial (gastos médicos, diminuição de renda por conta de incapacidade temporária, gastos futuros, etc) e extrapatrimonial (prejuízos psicológicos e à honra).

Prejuízos que eram valorados segundo a Lei Aquília, já que considerava que o homem livre não tinha preço, ao contrário do escravo. Este último, quando “danificado”, gerava ao seu “dono” o direito à indenização, que variava segundo a extensão do dano e a qualificação do escravo, ou seja, sua aptidão para a execução de determinadas tarefas. É de ser salientado que não era considerada a hipótese de pagamento por danos extrapatrimoniais inflingidos aos escravos, já que considerados mera mercadoria.


3 A influência grega


Posteriormente, em todas as grandes culturas, se produziu um amplo desenvolvimento da medicina, que reverte igualmente ao tema aqui tratado. Na Grécia aparecem novos elementos que se sobrepõem ao conceito vingativo da Lei de Talião.

Lá foram desenvolvidos estudos que dotaram a medicina de um caráter mais científico, em detrimento de outros elementos não racionais e empíricos até então predominantes. Estes estudos, datados do século V a.C., viriam a constituir o Corpus Hippocraticum, cuja síntese mais conhecida é o juramento ainda hoje repetido por profissionais médicos ao redor do planeta.

A efervescência cultural produzida da junção entre filosofia e ciência atingiu seu apogeu na Grécia, permitindo o intercâmbio entre disciplinas antes afastadas, tais como a filosofia e a anatomia, possibilitando que os métodos de análise, diagnóstico e cura pudessem ser exercidos de forma mais racional e lógica. A medicina se transformava cada vez mais em ciência, e na medida em que sua importância crescia, as atenções do Estado para ela se voltavam, cujo efeito era sentido através das diversas regulamentações que davam forma a sua natureza.

Esta mudança de pensamento permitiu alterações significativas no que tange à apuração das responsabilidades médicas. Antes culpado pelo insucesso de suas interferências sob qualquer condição, o profissional da medicina – sob a égide dos ensinamentos de Platão e Aristóteles – passou a ser responsabilizado não mais pelo resultado em si, mas por sua conduta profissional, por sua atitude de acordo com cada caso concreto.

A culpa médica, para ser atestada, deveria ser objeto da análise de outros profissionais que, em colegiado, emitiriam seu parecer. A culpa, portanto, só seria declarada se houvesse desatenção aos preceitos ou descumprimento das práticas e procedimentos médico-sanitários usualmente aceitos à época.

Concretamente, em Atenas foi criada a Lei Geral de Reparação, que não tratava igualmente a todos os homens, e distinguia o dano involuntário (culposo), ao qual correspondia uma indenização determinada, e o dano voluntário (doloso), com uma indenização equivalente ao dobro daquela devida pelo dano involuntário.

Platão foi responsável por uma pequena evolução, ao propor deixar de lado a Lei de Talião e se pensar apenas na indenização baseada na idéia filosófica de que o valor compensatório a ser pago poderia conduzir à transformação do ódio em amizade. E ainda, ao desenvolver a idéia do dano estético, ao propor aplicar as seguintes normas:

- Em caso de tentativa de homicídio da qual resultassem apenas lesões, o infrator seria condenado a indenizar a vítima em uma quantia “X”.

- Se a tentativa de lesão fosse bem sucedida, deveria pagar o dobro.

- Se quisesse produzir um dano e deixasse seqüela estética, pagaria o triplo.

- Se a lesão estética fosse incurável, o pagamento indenizatório seria em quádruplo.

Também na Grécia aparece a primeira Organização de Assistência ao Inválido, a cargo de um conjunto de representantes da sociedade. Ali, era considerado inválido todo aquele que não pudesse trabalhar, e cujo salário fosse inferior a uma determinada quantia. Esta assistência era paga pelo Estado, em valores que dependiam do nível de incapacidade para o trabalho, da quantidade de pessoas sob benefício, e da posição social da vítima.


4 O Direito árabe


Os árabes pré-islâmicos, por sua vez, se baseavam na aplicação:

- Da Lei de Talião (chamada Kisas). Lei que se aplicava entre as castas sociais e estamentos, ou seja, de escravo para escravo, mulher para mulher, homem livre para homem livre, etc.

- Do Resgate das Penas (conhecido por Dijah). O Dijah significava que o resgate (ou poena) poderia ser pago na forma de indenização, estabelecendo-se um valor máximo a ser concedido, de acordo com a situação, o dano causado e o status do ofendido.

A indenização do homem livre, em caso de morte, era paga em quantia fixa, normalmente medida em número de animais. Assim, um homem livre valia cem camelos, uma mulher cinqüenta, e um judeu trinta.

Em caso de lesões não mortais, dependia a indenização do homem livre da importância ou gravidade da lesão: se fosse corriqueira, se fixava em montante padrão para a época; em sendo mais complexa, era necessário a presença de um perito, para calcular a depreciação ocorrida, avaliando-se como a um escravo, sendo paga normalmente em volume superior a cem camelos. O Dijah (indenização máxima que se poderia obter em cada situação) era parâmetro para todo tipo de lesão não mortal.

Nas culturas árabes, o Direito Muçulmano estabeleceu disposições sobre a valoração e reparação do dano corporal, encontrando suas bases no Corão e no Suna (bases históricas), no Ichmá (base dogmática) e no Quiyás (base lógica).

O Corão se reporta à história do profeta Maomé, e contém 114 capítulos (suras), estabelecendo, em seus versículos 42 e 49 o seguinte:

“Cortad las manos de los ladrones, de los hombres y de las mujeres, en castigo de su crimen. Es la pena que Dios ha establecido para ellos.”

“Nosotros hemos prescrito a los jueces la pena del Talión. Se devolvería alma por alma, ojo por ojo, nariz por pariz, diente por diente, herida por herida. Los que cambien esta pena por una limosna, tendrán su mérito a los ojos de Dios. Los que transgredieran en sus juicios los preceptos que hemos dado será culpable.”


5 Origens no Direito europeu: França e Espanha


Os povos bárbaros introduzem o Wergeld, conceito fundamental, em virtude do qual o agressor teria de pagar uma compensação econômica à vítima, tendo chegado ao requinte de se criar “tabelas” indenizatórias, assinalando, por exemplo, um valor a ser pago por cada dedo perdido.

A influência dos códigos bárbaros perdurou na Europa, em especial entre os visigodos (Leovigildo, Alarico II, etc.), e neles, dentre outras coisas, se estabelecia:

- A valoração em dinheiro de determinadas lesões;
- A indenização do escravo era paga a seu dono;
- Era permitido o intercâmbio, ou “substituição” dos escravos “danificados”;
- Aplicava-se a Lei de Talião.

A idade média representou um período obscuro, em todos os sentidos, e especialmente sob a perspectiva do dano corporal, por conta da supressão das parcas garantias individuais existentes, do insipiente estado de direito ocorrida no período, sem que se criasse nada novo representou uma involução, no sentido de que as codificações existentes foram sendo esquecidas, ficando restritas basicamente aos monastérios.

A Lei Sálica, datada do século V, estabelecia que os ferimentos e/ou danos físicos inflingidos fossem examinados por pessoa competente. Foi o mais próximo da perícia médica que se chegou na época.

Na Espanha fez sua aparição – dentre outros – o Fórum de Castilla (ano 1250) que estabelece o primeiro código (baremo) espanhol de indenização de lesões.

A chegada do Renascimento trouxe um marco histórico, a Constitutio Criminalis Carolina, promulgada pelo Imperador Carlos no ano 1532, reconhecendo o médico como auxiliar fundamental nos assuntos jurídicos, constituindo-se a partir deste momento as bases para o desenvolvimento da medicina legal.

Carlos Magno, no século XVI, determinou a intervenção médica nos casos de avaliação de lesões. Princípio que havia sido reconhecido por Godofredo de Bullón no Código de Jerusalém, no ano 1100. Também o Papa Inocêncio III se fez acompanhar de assessores médicos em casos de avaliação de lesões, em uma multiplicidade de ocasiões.

Posteriormente, com o positivismo naturalista (século XIX), foi criado na Espanha o Cuerpo Nacional de Médicos Forenses, cuja participação na valoração médica do dano corporal assumiu grande importância, estendendo-se sobre os demais países do continente.

Na França, entre os séculos XI e XII, apareceu pela primeira vez a figura do perito, existindo também referências a peritos médicos nas leis normandas de princípios do século XIII, empregadas fundamentalmente nos casos de exame e valoração dos lesionados.

Nesta época, o direito francês começou a realizar a distinção entre responsabilidade civil e responsabilidade penal, antes apenadas com o mesmo tipo de punição.

Os franceses assumiram postura bastante peculiar quanto à responsabilidade médica, tendendo à imputabilidade, em virtude da multiplicidade de fatores – e do caráter subjetivo da maioria deles – capazes de influenciar os resultados de um procedimento médico.

Havia uma forte corrente doutrinária que defendia a necessidade de que não só o dano fosse efetivamente comprovado através de perícia, realizada por profissionais destacados, mas que também se provasse que este mesmo dano decorreu de manifesta imprudência, imperícia ou negligência.

O próprio ato de questionamento e pedido de ressarcimento era por vezes encarado como uma tentativa de enriquecimento ilícito, ou ainda como uma forma torpe de buscar vingança contra o médico, em virtude de um resultado desfavorável, causado de forma não intencional por parte do mesmo. Se alegava que o profissional não poderia ser responsabilizado pelo acaso, pelos acontecimentos causados pelo destino, e que nenhum médico – em princípio – laboraria em busca do fracasso.

A partir do século XVIII se produz um importante desenvolvimento, tanto legislativo quanto regulamentar, relativo à matéria. Ainda assim, apesar de todos os avanços, em países como a França, ainda foi necessário aguardar até fins do século XVIII, com a eclosão da Revolução Francesa, para que um artigo do código civil – o de número 1382 – redigido sem grande precisão, afirmasse:

“Tout fait quelconque de l’homme qui cause à autrui un dommage oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer.”

Ainda assim, a idéia de que o causador do dano médico, quando questionado, se tornaria uma vítima de vingança se estendeu de forma tão forte que mesmo em princípios do Século XIX, a Academia de Medicina de Paris tinha sua doutrina voltada para a inexistência de responsabilidade jurídica de seus membros, atendo-se meramente à responsabilidade ética e moral.

Newton Pacheco tem um trecho de sua obra[5] transcrito por Miguel Kfouri[6] , no qual relata um dos casos que levaram à modificação deste pensamento no entendimento dos tribunais franceses. Hoje, a responsabilidade civil médica é plenamente reconhecida e a obrigação de reparar os danos causados é tese amplamente aceita. Vale a pena, pois, pedir permissão àquele autor para transcrever trecho de sua obra, posto que possui enriquecedora narrativa histórica, permitindo compreender o processo de modificação de uma idéia em determinada sociedade, a partir da repercussão causada por um determinado acontecimento:

“Newton Pacheco ressalta a prudência e circunspecção com que as Cortes francesas apreciavam a responsabilidade médica, verificáveis pela análise de mais de um século de jurisprudência.

Referido autor passa a narrar, então, a verdadeira revolução operada na jurisprudência francesa, de 1832 em diante, desencadeada a partir do processo em que sobressai a atuação do Procurador Dupin: ‘O caso, em resumo, foi o seguinte: O Dr. Helie de Domfront foi chamado às seis horas da manhã para dar assistência ao parto da Sra. Foucault. Somente lá se apresentou às nove horas. Constatou, ao primeiro exame, que o feto se apresentava de ombros, com a mão direita no trajeto vaginal. Encontrando dificuldade de manobra na versão, resolveu amputar o membro em apresentação, para facilitar o trabalho de parto. A seguir notou que o membro esquerdo também se apresentava em análoga circunstância, e, com o mesmo objetivo inicial, amputou o outro membro. Como conseqüência, a criança nasceu e sobreviveu ao tocotraumatismo. Diante de tal situação, a família Foulcault ingressa em juízo contra o médico. Nasceu daí um dos mais famosos processos submetidos à justiça francesa.

A sociedade dividiu-se. A Academia Nacional de Medicina da França pronunciou-se a favor do médico e, solicitada pelo Tribunal, nomeou quatro médicos, dos maiores obstetras da época. O resultado do laudo foi o seguinte: 1. Nada provado que o braço fetal estivesse macerado; 2. Nada provado que fosse impossível alterar a versão manual do feto; 3. Não havia razões recomendáveis para a amputação do braço direito e, muito menos, do esquerdo; 4. A operação realizada pelo Dr. Helie deverá ser considerada uma falta grave contra as regras da arte.

Apesar da imparcialidade do laudo, a Academia impugnou-o e outro é emitido por outros médicos, que chegam a conclusão contrária à primeira manifestação dos Delegados da Academia.

O Tribunal de Domfront condenou o Dr. Helie ao pagamento de uma pensão anual de 200 francos.’

Doutrinou, então, o Procurador Dupin – e a ensinança ainda hoje revela-se atual: ‘(...) do momento em que houve a negligência, leviandade, engano grosseiro e, por isso mesmo, inescusável da parte de um médico ou cirurgião, toda a responsabilidade do fato recai sobre ele, sem que seja necessário, em relação à responsabilidade puramente civil, procurar se houve de sua parte intenção culposa’.”

Durante o século XX tem origem a Medicina do Trabalho. Época da industrialização em que floresce a figura do assalariado, até então de pouca expressividade.

O século XX é o século no qual o desenvolvimento da medicina possibilitou a aplicação de técnicas cada vez mais sofisticadas e precisas para o conhecimento da dimensão exata das conseqüências de determinado evento traumático sobre a saúde de um indivíduo. Foram modificados conceitos fundamentais, que haviam permanecido estáveis durante séculos, como o próprio conceito de saúde, a aceitação da idéia da transcendência do prejuízo estético, o estudo dos danos morais e de sua reparação, até se chegar ao momento atual.

Antonio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira Souza, ao tratar da evolução histórica da responsabilidade médica[7] , fazem interessante paralelo, relatando a passagem da vingança privada para a composição por conta de danos causados. Embora não concordando inteiramente com a narrativa, interessante transcrever trecho de sua obra, para ilustrar a visão de outros autores sobre o tema:

“O instituto da responsabilidade civil tem natureza essencialmente dinâmica, tendo de se transformar e se adaptar através dos tempos, adequando-se à evolução da própria civilização. A célebre frase que diz que onde está o homem também estará o direito pode ser empregada, igualmente, mutatis mutandis, para a seara do instituto ora em estudo, daí se poderia dizer, sem pestanejar, que onde existir o homem também existirá a responsabilidade.

Desde os primórdios, desde os primeiros grupamentos humanos, lá nas tribos nômades, já se constata a noção – e, mais precisamente, a aplicação – da responsabilidade civil e seus efeitos. É claro que dos tempos longínquos não se pode exigir requintes de normas como hoje encontramos no mundo; entretanto, para cada época, podemos afirmar que as várias formas de responsabilização eram deveras modernas, por óbvio.

Lentamente o homem primitivo vai evoluindo, não sozinho, mas em conjunto com todo o resto. Os grupamentos sociais começam a incutir a idéia da fixação, de não mais andar de um canto a outro. Os juristas, sociólogos e estudiosos do comportamento humano nos relatam nesse momento uma modificação (evolução) no conceito de responsabilidade. É bem verdade que ainda prevalecia nesta fase uma forma primitiva, a vingança privada.

Portanto, é nessa fase primitiva, selvagem, que a reparação de um dano causado está alheia à seara do Direito. Ela se dá sem parâmetros legais, consubstanciando-se na reação natural do ser humano diante de um estímulo considerado injusto e agressivo num dado momento e espaço. Prevalece, portanto, na origem dos povos, a reparação do mal pelo mal. No lugar de um lesado, passavam a figurar dois lesados, a vingança privada colocava a reparação do dano em escala subjetiva, numa duplicação do dano, tudo para satisfazer a honra do ofendido, mesmo que o prejuízo causado ficasse na esfera do material, o que era, sem dúvida, mais comum.

A evolução continua, como não poderia deixar de ser, e surgem as primeiras sociedades organizadas politicamente, vale dizer, os primeiros governos, e com eles vários regramentos jurídicos. A Lei das XII Tábuas é um dos ordenamentos jurídicos mais antigos, datando de 452 a.C., dentre outras legislações antigas, tais como o Código de Hamurabi e o Código de Manu.

A vindicta privata continuou, só que de maneira mais regrada e moderada, sob a interveniência estatal. O talião é consagrado pelo uso e se transforma em regra. Passou o legislador a definir as condições para a vítima exercer o seu direito natural de retaliação.

O passo seguinte foi o da composição. Desta feita, começa a se perceber, ainda que de maneira bastante crua, a necessidade de substituir a duplicidade do dano, isto é, inicia-se a fase em que se desperta para a possibilidade – muito mais conveniente e salutar – de, em vez de cobrar a retaliação, compor com o autor da ofensa, exigindo uma prestação de pena. A vítima passa a receber do agressor um ‘resgate’ – um somatório em pecúnia ou um objeto de valor.

A vingança privada é, portanto, substituída pela composição, ao alvedrio da vítima. Porém, a exemplo do ocorrido com o talião, há a interveniência estatal, vedando, pois, à vitima, fazer justiça com as próprias mãos e impondo que a composição seja fixada pela autoridade. É o momento da composição tarifada, agasalhada pela Lei das XII Tábuas, em que era estipulado, para cada caso, o valor do resgate (pena) a ser pago pelo ofensor.

Inicia-se, como fase seguinte, a generalização da responsabilidade civil, com a Lei Aquília. Aliás, citando o mestre Miguel Kfouri Neto, em sua obra Responsabilidade Civil do Médico, ‘na Lex Aquilia encontram-se os primeiros rudimentos de responsabilidade médica, prevendo a pena de morte ou deportação do médico culpado de falta profissional’.

Por conseqüência, surge no ordenamento a obrigação de reparar o dano causado. Não há mais o ‘resgate’ da agressão em termos de composição voluntária, vale dizer, não é mais da essência da responsabilidade civil a aplicação de uma pena, mas a reparação do dano, levando-se em consideração o conteúdo econômico envolvido e, principalmente, o elemento subjetivo culpa, importando aduzir que nessa marcha passa-se a separar a responsabilidade civil da responsabilidade criminal..”

Em suma, é preciso ter em mente o fato de que, ao longo de toda a história da civilização ocidental, mormente até o final da primeira metade do século XX, o profissional da medicina sempre ocupou posição social de inegável e elevado destaque. Sua palavra era ouvida e respeitada, e suas determinações cumpridas como verdade inquestionável. O exercício da medicina era uma arte para poucos, e que dependia do brilhantismo e da iluminação pessoal do médico.

Este exercício era encarado tal e qual verdadeiro sacerdócio, e os procedimentos adotados no tratamento de um paciente raramente eram submetidos a dúvidas ou discussões, encarados que eram como justos, inevitáveis ou indispensáveis.

Para isso contribuíam os recursos da medicina, até então limitados ou bastante precários, quase artesanais mesmo. A um tratamento ou procedimento mal sucedido, facilmente se podia atribuir o desenlace aos infortúnios do destino. Havia o senso comum de que todos os recursos disponíveis haviam sido usados para deter a enfermidade.

Nos povoados, vilarejos – e até mesmo nos centros urbanos, prevalecia a figura do “médico da família”, que atendia, via de regra, membros de até mais de uma geração familiar, sendo-lhes, ao mesmo tempo, amigo, confidente, conselheiro. O elo de confiança, o caráter personalíssimo do atendimento eram elementos levados ao extremo, e que inibiam qualquer tipo de questionamento, fosse em esfera privada ou judicial.

E veio a chamada Era Moderna. A amplitude e a rapidez das transformações científicas, médicas e tecnológicas modificaram de forma irreversível os fundamentos desta relação médico-paciente.

As relações sociais foram massificadas, daí se tornando impessoais. A figura do clínico geral – médico da família – perdeu relevância, uma vez que esse tipo de atendimento ficou restrito a uma minoria de poder aquisitivo mais elevado. Dois fatores muito importantes contribuíram para a despersonalização da figura do médico: a disseminação dos atendimentos em grandes hospitais e centros de saúde, e o crescente nível de especialização dos profissionais.

Eis, então, o momento em que a situação histórica começa a mudar. Ao mesmo tempo em que a medicina evoluiu, o médico foi afastado do conhecimento a fundo de seu paciente, transformado em um anônimo, conhecido apenas por fichas de acompanhamento do quadro clínico, ou mesmo uma simples entrevista preliminar.

O eixo da responsabilidade civil modificou-se, perdendo força a antiga convicção de que o médico gozava de “imunidade” no exercício de sua função. Tal situação parece lógica, uma vez que, ao passo que se foi demonstrando existir novas técnicas de tratamento, equipamentos cada vez mais sofisticados, remédios mais eficientes e instrumentos de apoio, e o conhecimento do médico ampliado por pesquisas e inovações científicas, o espaço destinado aos “infortúnios”, aos “desígnios do destino” foram sendo reduzidos, e o exercício da medicina passou a ser recoberto por um manto de responsabilidades até então inexistentes.


6 A evolução no Direito Brasileiro


A história ancestral da responsabilidade civil – ou obrigação de reparação de danos – no Brasil tem seu marco inicial nas Ordenações do Reino. Nelas se mantinha forte a influência do Direito Romano, que era expressamente mencionado como fonte subsidiária de direito positivo[8] .

Até então, a responsabilidade civil estava atrelada à responsabilidade penal, havendo menção, no Código Criminal de 1830, ao dever de satisfação, ou seja, de ressarcimento pelo ofensor à vítima, em razão do dano causado.

Nada mais natural, para nós, esta separação. Entretanto, não era este o pensamento predominante à época. O elemento definidor da esfera de responsabilidade é, basicamente, o tipo de interesse atingido. Na responsabilidade civil, a lesão é de ordem essencialmente privada, sem necessidade de ofensa à ordem pública. Já em relação à responsabilidade penal, o interesse lesionado é de ordem social, tutelado pelo Estado. Normalmente se verifica a existência de uma vítima prejudicada, mas este não é elemento indispensável. O importante é a distinção entre ordem pública e interesses privados.

Sobre o assunto, aduz Câmara Souza[9] :

“Uma próxima fase, a terceira, tem início pela genialidade de Teixeira de Freitas, o qual não concordava que a responsabilidade civil estivesse ligada à responsabilidade criminal. Ele observava, em seus escritos, que o ressarcimento do prejuízo ocasionado pelo delito passava a ser abordado como competência de legislação civil. Isso ocorria, segundo ele, em conseqüência da Lei de 3 de dezembro de 1841 ter derrogado o Código Criminal, tendo revogado-lhe o art. 31 e o § 5º do art. 269 do Código de Processo. Nessa mesma época, portanto, o instituto da responsabilidade civil se consolida como independente da responsabilidade criminal, passando, também, a se fundamentar no conceito de culpa, desenvolvendo-se a teoria da responsabilidade indireta, sendo admitida a presunção de culpa no dano causado por coisas inanimadas. Desenvolve-se, na mesma época, o princípio da responsabilidade dos funcionários públicos.”

Marilise Kostelnaki Baú[10] , assim complementa:

“No Brasil-Colônia, as Ordenações do Reino determinavam a obrigação de satisfação do dano, conforme comenta Valler, ao mencionar o art. 21, que tratava da obrigação do delinqüente de reparar o dano causado com o delito. O art. 22 determinava manter que a satisfação devesse ser a mais ampla possível e que, em caso de dúvida, a interpretação fosse feita em favor do ofendido. O art. 29, de sua vez, tratava da obrigação dos herdeiros do delinqüente em satisfazer o dano até o limite dos bens herdados.

Até o começo do século, a responsabilidade civil, no Brasil, no referente ao funcionário público, prevista na Constituição Federal, e quanto ao transporte de coisa, estabelecida no Código Comercial. Lei específica surgiu, pela primeira vez, em 1912, versando sobre a regulamentação da responsabilidade das estradas de ferro. O princípio norteador, genérico, sobre a responsabilidade aquiliana, adveio com os artigos 159 e 160 do Código Civil, de 1916. Dessas regras emanam todas as demais obrigações de reparação de danos.”

Nossa doutrina desenvolveu-se no sentido de considerar passível de responsabilização civil a violação de duas fontes de obrigação; a inobservância de textos legais e o descumprimento da norma contratual.

Posteriormente, com o estabelecimento da indenização por dano moral alçado a elemento constitucional, através do advento da Constituição Federal de 1988, e com a responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor, de 1990, nova era de direitos veio a se estabelecer no país, no tocante à responsabilidade civil, consoante já verificado em trabalhos anteriores, de nossa autoria.


7. Conclusões


Esta, em síntese, a história da formação das bases filosóficas e doutrinárias dos atuais conceitos de responsabilidade civil, de inegável influência no cotidiano dos profissionais da área de saúde.
.
A crescente interposição de ações judiciais contra erros médicos, em todas as regiões do país vem demonstrar a realidade destes aspectos. Os números demonstram não só a alarmante repetição de situações de risco, a precariedade das condições físicas, mas também o despreparo de profissionais jogados no mercado sem a devida habilitação e compromisso. Por outro lado, evidencia-se uma conscientização cada vez maior da população, em busca de qualidade no atendimento que lhe é entregue.

A má conduta profissional não deve, sob nenhuma hipótese, ser confundida com a má prática médica. A má conduta é geradora do erro médico, resultado imprevisto ou indesejado que pode ser ocasionado por ação ou omissão. Já a má prática médica ocorre quando os conhecimentos da medicina são desviados de sua finalidade primeira, e utilizados de forma a atentar contra a dignidade do ser humano, através de experiências científicas não autorizadas, ou mesmo qualquer tipo de discriminação, sob qualquer pretexto ou forma.

A prática da medicina, por ser uma atividade humana, está necessariamente limitada em seus conhecimentos, e exposta a resultados eventualmente adversos e inesperados. Todavia, é inegável que um dos ramos da ciência que experimentou maior desenvolvimento no decorrer do século passado foi exatamente o da medicina.

Os trabalhos e pesquisas realizados permitiram a identificação de novas doenças e agentes patogênicos, com a determinação de sua etiologia, ocasionando a possibilidade de diagnósticos precisos, e terapêuticas adequadas mediante tratamentos clínicos ou intervenções cirúrgicas cada vez mais especializadas e cada vez mais delicadas. Tudo isto representa um considerável aumento de complexidade no exercício da atividade médica e, por natural conseqüência, dos riscos a ela inerentes.

A importância deste tema consiste basicamente na dificuldade, quando não da impossibilidade, da reparação dos danos causados pela má conduta profissional do médico. Em sua maioria, as ações danosas não podem ser desfeitas, quando muito, reparadas, gerando transtornos de ordem física e emocional difíceis até mesmo de quantificar. A intervenção profissional exige um nível cada vez maior de comprometimento, na medida em que a ciência torna os conhecimentos sobre o corpo humano mais e mais específicos e complexos.


8. Notas do texto

[1] In Responsabilidade Civil do Médico, 4ª ed., pp. 38.

[2] Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (www.jurinforma.com.br/notas/0160.html).

[3] Si hay desgracia tú daras vida por vida, ojo por ojo, diente por diente, mano por mano, pie por pie, quemadura por quemadura, herida por herida.

[4] Ob. Cit., pp. 39

[5] O Erro médico: Porto Alegre: Livraria do advogado, 1991, pp. 23 a 25.

[6] Op. Cit, pp. 44-45.

[7] Em sua obra citada nas referências bibliográficas, pp. 22 e 23.

[8] O artigo 2º da lei historicamente conhecida como Lei da Boa Razão, datada de 18 de agosto de 1769, determinava expressamente “que o direito romano servisse de subsídio, nos casos omissos, não por autoridade própria, que não tinha, mas por serem muitas as suas disposições fundadas na boa razão.”

[9] Néri Tadeu Câmara Souza, In Responsabilidade Civil no Erro Médico, internet.

[10] Em sua obra “O contrato de assistência médica e a responsabilidade civil”, 2ª ed., pp. 11.



9. Referências bibliográficas


01. Baú, Marilise Kostelnaki. O contrato de assistência médica e a responsabilidade civil. Ed. Forense, 2ª edição, São Paulo, 2001.

02. Corsaro, Luigi. Culpa y responsabilidad civil: la evolución del sistema italiano. in Perfiles de la responsabilidad civil en el nuevo milenio. Ed. Dykynson, Madrid, 2000.

03. Couto Filho, Antonio Ferreira. Responsabilidade Civil Médica e Hospitalar. Ed. Del Rey. Belo Horizonte, 2001.

04. Kfouri Neto, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. Ed. Revista dos Tribunais, 4ª ed., São Paulo, 2001.
Culpa Médica e Ônus da Prova. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002.

05. Leleu, Yves-Henri. Le Droit Médical – Aspects juridiques de la relation médecin-patient. Éditions De Boeck Université, Bruxelas, 2001.

06. Lutzky, Jane Courtes. El Código de Defensa del Consumidor y la responsabilidad personal del médico en la República Federativa del Brasil. Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (http://www.bioetica.org/courteslutsky.htm), em 31/10/01.

07. Malufe, Guilherme Martins. Responsabilidade Civil dos Médicos. Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (www.jurinforma.com.br/notas/0160.html).

08. Mariano, Alonso Pérez. La relación médico-enfermo, presupuesto de responsabilidad civil (En torno a la “lex artis”), in Perfiles de la responsabilidad civil en el nuevo milenio. Ed. Dykynson, Madrid, 2000.

09. Moraes, Irany Novah. Erro Médico e a Lei. Ed. Revista dos Tribunais, 3ª ed., São Paulo, 1995.

10. Porto, Mário Moacyr. Temas de Responsabilidade Civil. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1989.

11. Rabinovich-Berkman, Ricardo D. Responsabilidad del médico – Aspectos civiles, penales Y procesales. Editorial Astra. Buenos Aires, 1999.

12. Stoco, Rui. Tratado da Responsabilidade Civil. Ed. Revista dos Tribunais. 5ª ed. São Paulo, 2001.

13. Souza, Néri Tadeu Câmara. Responsabilidade Civil do Erro Médico. Disponível na internet em 01.10.01, no endereço eletrônico www.direitomedico.com.br/neri.

Fonte: Escritório Online


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