:: Seu mega portal jurídico :: inicial | sobre o site | anuncie neste site | privacidade | fale conosco
        

  Canais
  Artigos
  Petições
  Notícias
Boletins informativos
Indique o
Escritório Online
 

Escritório Online :: Artigos » Direito Civil


Sociedades irregulares ou de fato no Novo Código Civil e a questão da legitimidade ativa

19/10/2003
 
Ronaldo Guaranha Merighi



RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar o tratamento dispensado pelo Novo Código Civil às sociedades irregulares ou de fato, bem como avaliar o real alcance da falta de personalidade jurídica desses entes e seus reflexos no direito material e processual civil.

ABSTRACT: The present work has as objective analyzes the treatment released by the New Civil Code to the irregular societies, as well as to evaluate the true reaches of the lack of juridical personality of these beings and their reflexes in the material and procedural civil right.

PALAVRAS-CHAVE:Sociedade irregular. Personalidade jurídica. Legitimidade.Novo Código Civil .

KEYWORDS: Irregular society. Juridical personality. Legitimate. New Civil Code.


INTRODUÇÃO.

Com a entrada em vigor, em janeiro de 2003, do Novo Código Civil, vários aspectos deste importante ramo do Direito Privado devem ser revisitados. Dentre eles, sem dúvida, as chamadas sociedades irregulares ou de fato merecem uma abordagem atualizada. Primeiro, porque o NCC inovou ao regulamentá-las de forma mais específica. Ademais, é público e notório o crescimento da economia informal no Brasil, com significativa participação no PIB[1] e evidentes reflexos no que tange ao tema pessoa jurídica. Sim, porque se temos inúmeras pessoas físicas atuando na informalidade, também encontramos numerosos agrupamentos de pessoas, com fins comuns, exercendo suas atividades à margem do controle direto do Estado.

Não estão,contudo, ao largo do controle do Direito. Afinal, dentro da visão tridimensional, desenvolvida entre nós por MIGUEL REALE[2] , em face da existência real das sociedades de fato, não cabia à ciência jurídica outra alternativa senão regulamentá-las.

Cumpre, pois, uma breve análise de como foi cumprida essa tarefa normativa pelo legislador civil de 2002 e seus eventuais reflexos na questão processual da legitimidade, mormente a ativa.


1- PESSOAS JURÍDICAS E PERSONALIDADE NO NOVO CÓDIGO CIVIL

O NCC tratou das pessoas jurídicas no Título II, do Livro I, depois de tratar das pessoas naturais. A exemplo do código anterior, não trouxe nenhuma definição acerca do instituto, tendo iniciado as disposições gerais com a tradicional classificação entre pessoas jurídicas de direito público e direito privado (art. 40).

O Código Civil Italiano traçou a mesma diretriz, estampando no seu titolo II, a clássica diferenciação[3] .

O Código Civil Português também não define o que lá denomina de pessoa colectiva (art. 157º e segs.).

Assim, coube à doutrina, como de regra, trazer à luz o conceito não fornecido pelo legislador. E ela definiu pessoa jurídica como “a unidade de pessoas naturais ou de patrimônios, que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações” (DINIZ: 206), ou, “entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil” (RODRIGUES: 86). Note-se que a primeira definição tem a vantagem de incluir as fundações, aquelas pessoas jurídicas caracterizadas “pela existência de acervo patrimonial e não pelo agrupamento de pessoas” (NADER: 229).

Não é demais afastar, desde logo, qualquer confusão entre a pessoa jurídica e a denominada firma individual. Na verdade, trata-se do empresário individual, uma vez que a expressão firma diz respeito ao nome empresarial, nos termos dos arts. 1.155 e 1.156[4] . O empresário individual é equiparado à pessoa jurídica para fins tributários, mas não possui personalidade jurídica distinta, havendo confusão patrimonial entre seus bens particulares e aqueles da empresa individual. Afinal, para haver pessoa jurídica é preciso pluralidade de pessoas que a formem.

Indubitavelmente, o princípio do universitas distat a singulis é o grande diferencial que se apresenta em favor daqueles seres coletivos que obtêm personalidade. Note-se que a não repetição da norma do art. 20, do Código de 1916 [5] , em nada afetou o princípio e deveu-se, apenas, à desnecessidade de sua explicitação. Até porque, o art. 1.024[6] , ao tratar do benefício de ordem, pressupõe a distinção patrimonial.


1.1 EXISTÊNCIA FÁTICA E EXISTÊNCIA JURÍDICA DAS PESSOAS JURÍDICAS

Sem ingressar na tortuosa seara da natureza jurídica das pessoas jurídicas, cumpre analisar brevemente a gênese desses seres – fincando os olhos nas pessoas de direito privado - desde o momento do seu nascimento fático até o instante de seu reconhecimento jurídico.

Sempre procuramos distinguir, inclusive por razões didáticas, a existência fática da jurídica, de modo que os requisitos, de cada fase, também podem ser diferenciados de acordo com o mesmo critério.

Os primeiros, relativos à existência no mundo dos fatos, podem ser assim enumerados: vontade humana criadora; observância das condições legais e liceidade dos fins.

A vontade, por implicar na intenção de pessoas físicas, ou de outras pessoas jurídicas, de se agruparem ou de instituírem um patrimônio para certa finalidade, e ainda no voluntário interesse de formar uma pessoa jurídica .

Condições legais, no sentido de observar o que a lei prevê, em termos formais, para a criação de cada espécie de pessoa jurídica. Se a intenção, v.g, é formar uma associação, é preciso observar , no estatuto, as características próprias deste tipo de ser (não ter finalidade lucrativa, por exemplo, cf. art. 53 e segs, do NCC).

Liceidade dos fins, no sentido de que o escopo pretendido deve estar em consonância com a lei e com os bons costumes.

Entretanto, mesmo com a presença desses requisitos, ainda não teremos pessoa jurídica . Haverá, não obstante, um ente, que existe no mundo fático mas não tem a sua presença plenamente reconhecida pelo direito. Ou seja: o direito não ignora a existência fática destes seres, mas não dá a eles personalidade jurídica. E o que falta para isso?

O registro, responde o art . 45, “caput” do NCC [7] . Na verdade, em alguns casos, é preciso uma outra providência preliminar para o início da existência legal, qual seja, a autorização do Poder Executivo. Isso “se justifica pela importância ou pelo destaque dado pela legislação para a atividade a ser desenvolvida pela pessoa jurídica.” (LOTUFO: 131).

Haverá um registro específico para cada tipo de pessoa jurídica de direito privado. Faz-se o tempo, pois, de anotarmos como o NCC classifica tais pessoas.


1.2. CLASSIFICAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO NO NCC.

O art. 44 da nova lei, em seus incisos, discrimina quais são as pessoas jurídicas de direito privado, a saber: associações (I), sociedades (II) e fundações (III). Em relação à lei anterior[8] verificamos uma distinção mais técnica, já preconizada pela doutrina.

Diferenciaram-se as associações (agora tratadas de forma expressa nos arts.53 a 61), das fundações (arts. 62 a 69) e das sociedades. Quanto a estas, “o novo Código Civil abandonou a referência tradicional de sociedades comerciais e sociedades civis, para refletir novos conceitos: as sociedades empresárias e sociedades simples” (ANDRADE JUNIOR: 43).

As sociedades ganharam, assim, tratamento específico no Livro II (Direito de Empresa), Título II. O principal traço diferenciador entre as empresárias e as simples talvez esteja, justamente, no tipo de registro. Isso, porque “as sociedades empresárias devem ter os seus atos constitutivos arquivados na Junta Comercial, ao passo que as sociedades que não se configuram como empresárias, em razão de não prevalecer nessas sociedades a organização de capital e trabalho sobre a profissão intelectual de seus integrantes possuem os seus atos constitutivos arquivados no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, correspondendo às sociedades simples” (TADDEI: 105).

Quanto aos partidos políticos, acertadamente o legislador de 2002 não os manteve no Código Civil em face da submissão dos mesmos a Lei 9.096/95, legislação específica.


2 – ENTES NÃO PERSONALIZADOS NO NOVO CÓDIGO CIVIL

As modificações não se restringiram àquelas já mencionadas, no tocante à classificação. O NCC passou também a subdividir as sociedades em não personificadas (Subtítulo I) e personificadas (Subtítulo II).

As personificadas são aquelas que, com o registro de seus atos constitutivos, mediante prévia autorização do Poder Executivo, quando necessária, possuem personalidade jurídica.

As não personificadas são aquelas que não a possuem. Ou seja, existem no campo fático, são reconhecidas pela lei, mas não são juridicamente dotadas de personalidade. O NCC as subdivide em sociedades em conta de participação e sociedades em comum.


2.1 SOCIEDADES EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO

As sociedades em conta de participação são aquelas em que há um sócio ostensivo, que exerce a atividade societária em nome individual, e os sócios participantes (ocultos), que só participam do resultado [9] .

Ou, como prefere a doutrina, “existe sociedade em conta de participação quando duas ou mais pessoas, sendo ao menos uma comerciante, se reúnem para a realização de uma ou mais operações comerciais, sendo essas operações feitas em nome e sob a responsabilidade de um ou alguns sócios comerciantes.” (MARTINS:255).

Logicamente, justificando-se o uso da expressão comerciante,esse ensinamento foi elaborado à época da vigência do Código Comercial, o qual regulamentava as sociedades em nome coletivo nos arts. 315 e 316.

De qualquer forma, o mesmo autor já reconhecia a possibilidade de haver sociedade em conta de participação em caráter civil, bastando para isto, que o sócio ostensivo não fosse comerciante, ou empresário, em uma terminologia atual (MARTINS:260).

Como se percebe, não podemos confundir esses seres com sociedades irregulares ou de fato. O que se tem é a “desnecessidade do registro” (ANDRADE JUNIOR:46), uma vez que a sociedade existe apenas entre os sócios e só os vincula, e não terceiros.Em face dos terceiros responderá, nos termos do parágrafo único, do art. 991, o sócio ostensivo.


2.2 SOCIEDADES EM COMUM (IRREGULARES OU DE FATO)


2.2.1 Aspectos gerais

A partir do art. 986 [10] o Código de 2002 passa a tratar, com outra denominação, da sociedade de fato ou sociedade irregular.

A questão terminológica não é totalmente tranqüila, e talvez daí tenha vindo a preferência do legislador pelo termo sociedade em comum. Primeiro, poderíamos indagar o porquê de se falar em sociedades de fato e não em associações de fato. Será que também essas figuras sem personalidade, por falta de registro, não seriam irregulares ou de fato? Claro que sim. Na verdade, “a denominação sociedades de fato não é referência à espécie de pessoa jurídica e conseqüente exclusão das demais, como associações e fundações.” (NADER:248), Vale dizer: a rigor, o termo sociedade aqui não é usado de forma técnica, e sim em seu sentido mais amplo ou genérico.

Ainda na mesma seara, há quem diferencie as sociedades de fato, nas quais não há contrato social, das irregulares, onde existem os contratos, mas não o registro (ANDRADE JUNIOR:44 e NADER:249).

A distinção, porém, é despicienda. Mesmo sem contrato social pode haver uma reunião de pessoas trabalhando para a consecução de objetivos lícitos. Logo, o fator realmente importante para separar os dois momentos cruciais na existência desses entes é o registro. Sem ele, não há personalidade jurídica.

Embora a existência jurídica não esteja plenamente reconhecida, a existência fática pode ser facilmente demonstrada pelos terceiros que se relacionarem com esses entes. Através de qualquer meio de prova – qualquer documento, ou mesmo por intermédio de testemunhas – o interessado poderá demonstrar a existência da sociedade em comum. Já para os sócios, nas relações internas e externas, a única prova admitida para o mesmo fim é a escrita (de acordo com o art.987 [11] ).

A partir daqui, começamos a perceber que a lei não só reconhece a existência fática das sociedades em comum, como pressupõe que elas irão se relacionar com terceiros, ou mesmo que haverá relações humanas – entre os sócios – em seu seio. Interessante, pois, avaliar qual o significado da já proclamada ausência de personalidade jurídica.

Com a revitalização do termo personalidade pelo NCC, inclusive com o destaque dos direitos da personalidade no Capítulo II, referente às pessoas naturais, a palavra precisa ser corretamente dimensionada em cada um de seus sentidos.

Tradicionalmente, personalidade jurídica vem sendo entendida “como a aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações” (VENOSA:139). Para guardar similitude com o novo texto do art. 1º [12] , melhor seria falar de uma possibilidade genérica de adquirir direitos e contrair deveres. Afinal, o termo obrigação tecnicamente é mais bem empregado com o significado de relação, nexo ou liame.

Enfim, ter personalidade significa, resumidamente, poder ser sujeito de direitos; figurar no pólo ativo ou passivo de uma relação obrigacional. O conceito de personalidade jurídica, sob esta óptica, assemelha-se ao de capacidade de direito, tanto que para PONTES DE MIRANDA “são o mesmo”. (in , LOTUFO:16).

Noutro aspecto, entretanto, a personalidade “se associa à expressão do ser humano, traduzido como valor objetivo, interesse central do ordenamento e bem juridicamente relevante” (RODRIGUES,in TEPEDINO:03). Neste sentido, intimamente relacionado ao Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, da CF), é que irão surgir os direitos da personalidade, ligados diretamente às pessoas naturais. Dentro desse segundo contexto é que o NCC inseriu o art. 52, mandando aplicar às pessoas jurídicas, no que couber, as normas protetivas do direito da personalidade[13] .

Traçadas as duas vertentes principais atinentes ao sentido de personalidade jurídica, é de se perguntar se em algum dos dois aspectos as sociedades de fato são efetivamente atingidas por não terem registro. Ou, para esmiuçar o questionamento: as sociedades de fato são sujeitos de direitos e deveres? Podem gozar da proteção dada às pessoas jurídicas no tocante aos direitos de personalidade?

Para procurarmos responder essas perguntas é necessária uma incursão no terreno da responsabilidade civil e mesmo no direito processual. Vejamos.


2.2.2 Legitimidade passiva e responsabilidade dos sócios.

Indubitavelmente, as sociedades comuns não personificadas possuem responsabilidade perante terceiros. Isso quer se trate de responsabilidade contratual ou de culpa aquiliana. Tal assertiva, até certo ponto óbvia, serve para destacar que o fato de não ter personalidade jurídica não afeta a possibilidade das sociedades irregulares serem sujeitos de direito, ao menos no pólo passivo. Em outras letras, ninguém questiona que elas são capazes de deveres, na ordem civil.

Para afastar qualquer dúvida quanto à responsabilidade desses entes nas relações consumeristas, a Lei 8.078/90, ao conceituar a figura do fornecedor, também os incluiu na norma do “caput”, do art. 3º [14] .

Responderá pelos ilícitos civis, e de forma objetiva nas relações de consumo, o chamado patrimônio especial, a que faz menção o art. 988, do NCC [15] . A correta exegese do artigo é aquela que entende como patrimônio especial o formado por uma “comunhão de interesses dos sócios, ou uma forma de propriedade condominial no que se refere a este patrimônio, de tal forma que os sócios se tornem proprietários condominiais de coisa comum” (ANDRADE JUNIOR:44). Claro está, portanto, que o termo especial não significa autônomo em relação aos bens dos sócios, uma vez que não vigora o princípio do universitas distat a singulis. Ainda assim, temos a formação de uma universitas iuris, já que os bens em comum estão agregados por força de lei e são compostos da parte ativa e também do passivo[16] .

Cabe, a esta altura, indagar se a responsabilidade dos sócios seria, além de ilimitada, subsidiária ou não. No primeiro sentido, encontramos a seguinte lição: “A responsabilidade dos sócios, no caso, é ilimitada, porém subsidiária (omissis).E, por igual, o credor da sociedade deve primeiro, pelas dívidas sociais, executar a sociedade, para na falta de bens realizar a responsabilidade ilimitada do sócio, que por isso é subsidiária” (REQUIÃO:280). Invocava-se, como apoio legal a esta tese, o art. 350 do Código Comercial, que trazia norma semelhante à do art. 1.024 do NCC.[17]

O art. 990[18] , também do Código de 2002, faz referência à norma do 1.024, não com a clareza que seria de se esperar. Pela atual redação, pode se dar a impressão de que apenas o sócio que contratou com a sociedade está impedido de invocar o benefício de ordem. Contudo, a parte inicial do art. 990 não deixa dúvida do contrário, “na medida em que sendo solidária e ilimitada a responsabilidade de todos os sócios, a todos os sócios deveria ser negado o benefício de ordem,e, não somente o que tenha representado a sociedade na transação com terceiros” (ANDRADE JR:45)

Desta feita, nada obstante a existência de um acervo de bens pertencente à sociedade de fato, claro está que os sócios não podem exigir que sejam eles excutidos antes de seus bens particulares. Afinal, não vigora aqui a distinção patrimonial típica das pessoas jurídicas. E pela falta de diferenciação entre o patrimônio particular dos sócios e o patrimônio especial, o fato é que todos os sócios devem responder de forma solidária, inclusive com bens particulares. Isso inclusive em nome dos princípios da socialidade e da boa-fé objetiva, que nortearam toda a codificação.

A crítica – de lege ferenda[19] - aqui consignada é no sentido de se excluir a parte final da norma, a fim de eliminar qualquer confusão na sua exegese.


2.2.3 A capacidade de ser titular de direitos e deveres das sociedades de fato e a questão da legitimidade processual ativa.

Já deixamos firmada a possibilidade de as sociedades irregulares contraírem deveres, uma das facetas da personalidade enquanto aptidão para ser sujeito de relação jurídica.

Indaga-se, agora, se essas sociedades também podem figurar no pólo ativo de uma relação jurídica obrigacional, ou seja, como titulares de direitos subjetivos, como por exemplo, de um direito de crédito.

O questionamento aparece em função do § 2º, do art. 20, do Código de 1916 [20] , não repetido no Código de 2002. A norma da legislação antiga trazia uma limitação ao exercício do direito de ação por parte das sociedades em comum e era assim comentada: ”Não estando registrada, a sociedade não tem personalidade jurídica, nem personalidade própria. E se não tem personalidade, como poderá figurar em juízo para acionar seus membros ou terceiros? Não é possível.” (CARVALHO SANTOS:392).

Ao aplicar o citado § 2º, estaríamos impedindo, por exemplo, que uma sociedade irregular pudesse acionar um fornecedor que descumprisse a entrega de determinado produto, ou um consumidor seu que não lhe pagasse.

A limitação não implicaria, de qualquer modo, na inexistência do direito subjetivo material. Por uma questão lógica, se as sociedades de fato podem ser sujeitos de relação jurídica, podem ocupar, em termos de relação obrigacional –decorrente da lei ou do contrato – qualquer um dos dois pólos. Não é aqui, na definição de personalidade como aptidão de ser capaz de direitos e deveres, que a ausência de personalidade repercute. Tanto assim que nunca se cogitou na possibilidade de alguém retomar o que voluntariamente tivesse pago a uma sociedade irregular.

O ponto em que a norma revogada verdadeiramente atingia as sociedades em comum era naquele outrora previsto no art. 75 do Código de 1916 [21] , também não repetido no Código atual. Portanto, partindo da premissa de que as sociedades de fato podiam ser titulares de direitos subjetivos, no caso de violação destes seus direitos surgiria, logicamente, a pretensão. Entretanto, por expressa vedação legal, elas estariam proibidas de obter a atuação do poder jurisdicional para deduzir sua pretensão em juízo. Em resumo: a falta de personalidade jurídica trazia uma limitação ao exercício do direito de ação, por expressa determinação legal.

Com o Código de Processo Civil de 1973 a questão ganhou outro contorno. Isso porque o seu art. 12, VII[22] , fez referência à representação em juízo das sociedades sem personalidade jurídica, tanto na forma passiva como na forma ativa. Ora, tal dispositivo passou a contemplar de forma explícita a legitimidade ativa daquela espécie de sociedade para atuar em juízo.

O aparente conflito de normas já era, outrora, solucionado em favor da legitimidade ativa: “O aludido art. 20 do C.Civil de 1916, hoje revogado, já não podia prevalecer diante do disposto no supracitado art. 12, inciso VII, do Código de Processo Civil, uma vez que ambos emanam de legislação ordinária e a lei posterior revoga a anterior quando seja com ela incompatível, conforme preceitua o art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil.” (NADER:254). Tanto assim que, ao comentar o dispositivo processual, PONTES DE MIRANDA já assentava que “não mais se cogita da capacidade processual só passiva” (325).

Pois bem. Com a revogação do § 2º, do art. 20 do Código de 1916, não pode haver mais nenhuma dúvida acerca da legitimidade ativa. Somente a lei pode limitar algum direito. Mesmo para aqueles que entediam que a norma limitativa de direito material havia subsistido em face da regra processual, hoje não existe mais motivo para se sustentar a impossibilidade de as sociedades de fato acionarem seus membros ou terceiros.

Afinal, como sujeitos de relação jurídica, embora não possuam personalidade, são titulares de direitos e deveres e,até mesmo por deferência constitucional (art. 5º, XXXV), têm o direito de invocar a proteção estatal quando do surgimento de uma pretensão.

Conseqüentemente, se a pretensão surgir pela violação de um direito de personalidade extensível às pessoas jurídicas – ofensa ao nome, v.g. – não haverá nenhum óbice ao ajuizamento de ação embasada no art. 52, do NCC. Vale dizer: as sociedades de fato também gozam, como as suas congêneres registradas, no que couber, de proteção aos direitos da personalidade.


CONCLUSÃO

Ao término deste breve estudo sobre as sociedades de fato ou irregulares, alinhavamos, com o confessado e despretensioso objetivo de suscitar o debate, algumas considerações finais:

a) O Novo Código Civil previu, de forma expressa, as sociedades não personificadas, diferenciando-as em sociedades por conta de participação e sociedades em comum, sendo que estas últimas são as tradicionalmente conhecidas sociedades de fato ou irregulares;

b) Não há interesse prático em diferenciar as sociedades de fato (sem contrato social) das sociedades irregulares (com contrato não registrado), uma vez que o divisor de águas,entre a existência fática e a jurídica, é o registro (precedido de autorização do Poder Executivo, quando necessária);

c) A falta de personalidade jurídica não implica na impossibilidade das sociedades de fato serem sujeitos de relação jurídica, ou seja, de direitos e deveres na ordem civil.

d) A rigor, a falta de personalidade jurídica implica apenas na não aplicação do princípio do universitas distat a singulis. Vale dizer: os sócios respondem de forma solidária, com seus patrimônios próprios e sem a possibilidade de invocar benefício de ordem, por todos os haveres das sociedades de fato, devendo o art. 990 ser assim interpretado e, de lege ferenda, modificado para deixar esta idéia explicitada.

e) Em face do art. 12, VIII, do Código de Processo Civil e da revogação do § 2º, do art. 20, do Código Civil de 1916, não há mais nenhuma dúvida de que as sociedades de fato ou irregulares possuem legitimidade ativa para deduzirem em juízo as suas pretensões.

f) Dentre as pretensões dedutíveis, está também aquela que surja pela violação de um direito de personalidade, desde que goze de proteção legal, nos termos do art. 52, do NCC.


NOTAS DO TEXTO:

[1] Algo em torno de 8% do PIB, em 1997 segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (www.ibge.gov.br)

[2] REALE, Miguel. Noções preliminares de direito. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 64

[3] Art. 11 Persone giuridiche pubbliche
Le Province e i Comuni, nonché gli enti pubblici riconosciuti come persone giuridiche, godono dei diritti secondo le leggi e gli usi osservati come diritto pubblico (824 e seguenti).
Art. 12 Persone giuridiche private
Le associazioni, le fondazioni e le altre istituzioni di carattere privato acquistano la personalità giuridica mediante il riconoscimento concesso con decreto del Presidente della Repubblica.

- Per determinate categorie di enti che esercitano la loro attività nell'ambito della Provincia, il Governo può delegare ai prefetti la facoltà di riconoscerli con loro decreto (att. 1, 2).

[4] Art. 1.155. Considera-se nome empresarial a firma ou a denominação adotada, de conformidade com este Capítulo, para o exercício de empresa.
Parágrafo único. Equipara-se ao nome empresarial, para os efeitos da proteção da lei, a denominação das sociedades simples, associações e fundações.
Art. 1.156. O empresário opera sob firma constituída por seu nome, completo ou abreviado, aditando-lhe, se quiser, designação mais precisa da sua pessoa ou do gênero de atividade.

[5] Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros.

[6] Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais

[7] Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

[8] Art. 16 São pessoas jurídicas de direito privado: I- as sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as fundações; II- as sociedades mercantis; III- os partidos políticos.

[9] Art. 991. Na sociedade em conta de participação, a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade, participando os demais dos resultados correspondentes.
Parágrafo único. Obriga-se perante terceiro tão-somente o sócio ostensivo; e, exclusivamente perante este, o sócio participante, nos termos do contrato social.
Art. 992. A constituição da sociedade em conta de participação independe de qualquer formalidade e pode provar-se por todos os meios de direito.
Art. 993. O contrato social produz efeito somente entre os sócios, e a eventual inscrição de seu instrumento em qualquer registro não confere personalidade jurídica à sociedade.

[10] Art. 986. Enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatíveis, as normas da sociedade simples.

[11] Art. 987. Os sócios, nas relações entre si ou com terceiros, somente por escrito podem provar a existência da sociedade, mas os terceiros podem prová-la de qualquer modo.

[12] Art. 1o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

[13] Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.

[14] Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. (sublinhei)

[15] Art. 988. Os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum.

[16] Vide art. 91: Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico.

[17] Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.

[18] Art. 990. Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, excluído do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que contratou pela sociedade.

[19] Note-se que não há previsão de modificação do art.990, no Projeto de Lei n. 6.960/02, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza.

[20] § 2º.As sociedades enumeradas no art. 16, que, por falta de autorização ou de registro, se não reputarem pessoas jurídicas, não poderão acionar seus membros, nem a terceiros; mas estes poderão responsabilizá-las por todos os seus atos.

[21] Art.75. A todo o direito corresponde uma ação que o assegura.

[22] Art. 12. Serão representados em juízo ativa e passivamente: VII – as sociedades sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens.


BIBLIOGRAFIA

ANDRADE JÚNIOR, Attila de Souza Leão. Comentários ao novo código civil. Direito das sociedades. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. IV.

CARVALHO SANTOS, J.M. Código civil brasileiro interpretado. 11. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1972, v. I

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. Teoria Geral do direito civil. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1.

FIUZA, Ricardo et al. Novo código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003.

LOTUFO, Renan. Código civil comentado. Parte Geral. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

NADER, Paulo. Curso de direito civil. Parte geral. 1.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, t. I

REALE, Miguel. Noções preliminares de direito. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1985.

REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 22. ed. São Paulo:Saraiva, 1995, 1ºv.

RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. Parte Geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil.Parte Geral. 3. ed. São Paulo:Atlas, 2003.

TADDEI, Marcelo Grazzi., O futuro do direito comercial e o novo código civil brasileiro. Em tempo., v.4, 98-109, AGO 2002.

TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A nova parte geral do novo código civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

Fonte: Escritório Online


Enviar este artigo para um amigo                            Imprimir


Para solicitar o e-mail do autor deste artigo, escreva: editor@escritorioonline.com



© 1999-2012 Escritório Online. Direitos Reservados. Leis 9.609 e 9.610/98.


Publicidade