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Escritório Online :: Artigos » Direito Processual Penal


Este monstro denominado RDD - Regime Disciplinar Diferenciado

09/08/2004
 
Rômulo de Andrade Moreira



Recentemente foi promulgada uma lei que alterou o Código de Processo Penal e, de quebra, modificando também a Lei de Execução Penal, instituiu entre nós o chamado Regime Disciplinar Diferenciado – RDD. Como outras tantas leis no Brasil, esta também foi ditada no afã de satisfazer a opinião pública e como uma resposta à violência urbana (ao menos no que concerne à alteração produzida na Lei de Execução Penal).

Mais uma vez, utiliza-se de um meio absolutamente ineficaz para combater a criminalidade, cujas raízes, sabemos todos, está na desigualdade social que ainda reina no Brasil (apesar da esperança que ainda também nos resta). Efetivamente, nos últimos anos temos visto várias leis criminais serem apresentadas como um bálsamo para a questão da violência urbana e da segurança pública, muitas delas com vícios formais graves e, principalmente, outros de natureza substancial, inclusive com mácula escancarada à Constituição Federal.

Há entre nós um mau vezo em se interpretar a Constituição à luz da legislação infraconstitucional (!!!), ao invés do contrário, ou seja, procurar-se uma interpretação das leis ordinárias à luz da Constituição Federal. O resultado, por óbvio, é desastroso, apesar de agradar a alguns (ora por ignorância, ora por conveniência). Pois bem: temos agora a Lei nº. 10.792/2003 que, a par de trazer interessantes modificações na disciplina do interrogatório (como a exigência de defensor para o interrogando e a possibilidade de participação efetiva das partes), alterou a Lei de Execução Penal que, aliás, está fazendo aniversário de vinte anos (sem motivos, aliás, para comemorações).

Pela norma, estabelece-se que a “prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; recolhimento em cela individual; visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas e direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.” Também por força da referida lei, o RDD “poderá abrigar presos provisórios (leia-se: aqueles ainda sem uma condenação definitiva e, portanto, presumivelmente não culpados, segundo a nossa Carta Magna) ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”, bem como “o preso provisório (idem) ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.” O que seriam mesmo fundadas suspeitas? Afinal, a presunção constitucional não é a de não-culpabilidade? E o que seria mesmo uma organização criminosa? Como se sabe, não há no Brasil uma lei que traga tal definição, ferindo-se, destarte, o princípio da legalidade, também de índole constitucional.

A inclusão no RDD será determinada por “prévio e fundamentado despacho do juiz competente”, a partir de “requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa”, sendo imprescindível a “manifestação do Ministério Público e da defesa”, devendo ser “prolatada no prazo máximo de quinze dias.” Pergunta-se: quem seria esta outra autoridade administrativa? O Secretário de Estado da Justiça? O Governador do Estado? Estariam eles então, agora, a figurar como partes ou sujeitos do procedimento jurisdicional de execução penal?

Cotejando-se, portanto, o texto legal e a Constituição Federal, concluímos com absoluta tranqüilidade ser tais dispositivos flagrantemente inconstitucionais, pois no Brasil não poderão ser instituídas penas cruéis (art. 5º., XLVII, “e”, CF/88), assegurando-se aos presos (sem qualquer distinção, frise-se) o respeito à integridade física e moral (art. 5º., XLIX) e garantindo-se, ainda, que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante (art. 5º., III).

Será que manter um homem solitariamente em uma cela durante 360 ou 720 dias, ou mesmo por até um sexto da pena (não esqueçamos que temos crimes com pena máxima de até 30 anos), coaduna-se com aqueles dispositivos constitucionais? Ora, se o nosso atual sistema carcerário, absolutamente degradante tal como hoje está concebido, já não permite a ressocialização do condenado, imagine-se o submetendo a estas condições. É a consagração, por lei, do regime da total e inexorável desesperança. Como afirma José Antonio Paganella Boschi, “a potestade punitiva encontra limites na aspiração ética do Direito (...), inclusive quanto ao processo destinado à imposição, quantificação e posterior execução das penas, matéria do CPP e da LEP.”[1]

O saudoso Norberto Bobbio afirmava que os “direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais.”[2] Por outro lado, continua o filósofo italiano, “(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”[3]

Mas, não é só.

Entendemos que o RDD também afronta a Constituição, agora o seu art. 5º., XLVI, que trata da individualização da pena. Não se olvide que a individualização da pena engloba, não somente a aplicação da pena propriamente dita, mas também a sua posterior execução, com a garantia, por exemplo, da progressão de regime. Observa-se que o art. 59 do Código Penal, que estabelece as balizas para a aplicação da pena, prevê expressamente que o Juiz sentenciante deve prescrever “o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade”, o que indica induvidosamente que o regime de cumprimento da pena é parte integrante do conceito “individualização da pena”. Assim, não podemos admitir que, a priori, alguém seja condenado a cumprir a sua pena em regime integralmente fechado, vedando-se absolutamente qualquer possibilidade de progressão, ferindo, inclusive, as apontadas finalidades da pena: a prevenção e a repressão.

Como ensina Luiz Luisi, “o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo.” (grifo nosso). Explicitando este conceito, o mestre gaúcho ensina: “Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução.”(...) “Aplicada a sanção penal pela individualização judiciária, a mesma vai ser efetivamente concretizada com sua execução.” (...) “Esta fase da individualização da pena tem sido chamada individualização administrativa. Outros preferem chamá-la de individualização executória. Esta denominação parece mais adequada, pois se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionais.”(...) “Relevante, todavia no tratamento penitenciário em que consiste a individualização da sanção penal são os objetivos que com ela se pretendem alcançar. Diferente será este tratamento se ao invés de se enfatizar os aspectos retributivos e aflitivos da pena e sua função intimidatória, se por como finalidade principal da sanção penal o seu aspecto de ressocialização. E, vice-versa.”

E conclui o autor: “De outro lado se revela atuante o subjetivismo criminológico, posto que na individualização judiciária, e na executória, o concreto da pessoa do delinqüente tem importância fundamental na sanção efetivamente aplicada e no seu modo de execução.”[4] (grifos nossos).

Assim, não restando dúvidas de que a possibilidade de progressão de regime é parte integrante da individualização da pena, afigura-se-nos também inconstitucional o RDD, desde que constitui elemento impeditivo daquela garantia.

Comentando o assunto, o mestre Tucci afirma que o RDD, “mais do que um retrocesso, apresenta-se como autêntica negação dos fins objetivados na execução penal, constituindo um autêntico bis in idem, uma vez tida a imposição da pena como ajustada à natureza do crime praticado – considerados todos os seus elementos constitutivos e os respectivos motivos, circunstâncias e conseqüências -, e à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social e à personalidade do agente.”[5]

Esqueceu-se-se novamente que o modelo clássico de Justiça Penal, fundado na crença de que a pena privativa de liberdade seria suficiente para, por si só, resolver a questão da violência, vem cedendo espaço para um novo modelo penal, este baseado na idéia da prisão como extrema ratio e que só se justificaria para casos de efetiva gravidade. Em todo o mundo, passa-se gradativamente de uma política paleorrepressiva ou de hard control, de cunho eminentemente simbólico (consubstanciada em uma série de leis incriminadoras, muitas das quais eivadas com vícios de inconstitucionalidade, aumentando desmesurada e desproporcionalmente a duração das penas, inviabilizando direitos e garantias fundamentais do homem, tipificando desnecessariamente novas condutas, etc.) para uma tendência despenalizadora.

Hoje, ainda que o nosso sistema penal privilegie induvidosamente o encarceramento (acreditando, ainda, na função dissuasória da prisão), o certo é que a tendência mundial é no sentido de alternativizar este modelo clássico, pois a pena de prisão em todo o mundo passa por uma crise sem precedentes. A idéia disseminada a partir do século XIX segundo a qual a prisão seria a principal resposta penológica na prevenção e repressão ao crime perdeu fôlego, predominando atualmente “uma atitude pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir com a prisão tradicional” (Cezar Roberto Bittencourt).

Urge, pois, que encontremos uma solução intermediária que não privilegie o cárcere (muito menos a desumanidade no cumprimento da pena), nem espalhe a idéia da impunidade. Parece-nos que esta solução se encontra exatamente nas penas alternativas. É induvidoso que o cárcere deve ser concebido como última via, pois não é, nunca foi e jamais será solução possível para a segurança pública de um povo. A nossa realidade carcerária é preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los; e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábricas de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muitas das vezes, torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém, de uma tal forma estigmatizados que se tornam reféns do seu próprio passado. Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros; este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer).

Já no século XVIII, Beccaria, autor italiano, em obra clássica, já afirmava que “entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos crimes, é necessário escolher os meios que devem provocar no espírito público a impressão mais eficiente e mais perdurável e, igualmente, menos cruel no organismo do culpado” (Dos Delitos e das Penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 43).

Jean Paul Marat, em 1790, advertia que “es un error creer que se detiene el malo por el rigor de los suplicios, su imagen se desvanece bien pronto. Pero las necesidades que sin cesar atormentan a un desgraciado le persiguen por todas partes. Encuentra ocasión favorable? Pues no escucha más que esa voz importuna y sucumbe a la tentación.” (Plan de Legislación Criminal, Buenos Aires: Hamurabi, 2000, p. 78). A preocupação, vê-se, é antiga.[6]

Por tudo quanto exposto, o melhor seria cognominar o RDD de “Regime Diferenciado da Desesperança”, lembrando-se da advertência de Nilo Batista, comentando-o: “Quando os condenados começarem a se matar, saberemos muito bem, ´sem sentimentalismos feminis`, de quem é a culpa”[7] .


Notas do texto:


[1] Ação Penal, Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2002, 3ª. ed., p. 19.

[2] Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 01.

[3] Idem, p. 05.

[4] Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs.

[5] Boletim do IBCCrim, nº. 140, julho/2004, p. 4.

[6] Leia-se Michel Foucault, no indispensável “Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões”, Rio de Janeiro: Vozes, 1998, 18ª. edição.

[7] Boletim do IBCCrim, nº. 135, outubro/2003, p. 02.

Fonte: Escritório Online


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