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Escritório Online :: Artigos » Ensaios, Crônicas e Opiniões


Justiça: valor absoluto

07/01/2005
 
Damásio de Jesus



A história americana registra um episódio que, pelo seu alto valor humano, indica até que ponto pode chegar o clamor pela justiça[1].

Roma. Ano de 1805. Uma ensolarada tarde de outubro. Dois homens galgam lentamente a colina do Monte Sagrado[2] . Um deles é jovem, esguio, e o cenho carregado não esconde a beleza dos traços de origem crioula. O outro, menos jovem, menos alto, ombros curvados e cabelos grisalhos ao vento. Caminham em silêncio. Dir-se-ia que há dentro deles um vulcão prestes a explodir. Chegam ao cimo. Ambos contemplam a cidade dos Césares e dos deuses. Há, no olhar do jovem, um misto de mágoa e desafio. Seus olhos procuram algo, pousam demoradamente no Ocidente e, súbito, cai de joelhos e brada solenemente:

“Juro pelo Deus de meus antepassados; juro pelos meus antepassados; juro pelo meu país natal, que não permitirei que minhas mãos permaneçam ociosas, nem minha mente em repouso, enquanto não livrar minha pátria das algemas que a escravizam à Espanha!”.

Esse jovem era Simón Antonio Jose de La Santíssima Trinidad Bolívar y Palacios, o libertador de seis nações americanas[3] . Tinha, então, 21 anos de idade. O outro, seu mestre, Simon Rodrigues. Somente o mestre e o céu da Itália testemunharam essa promessa.

Um jovem recorre aos céus e à força de uma promessa para proporcionar justiça a um povo. A consciência da lesão sofrida, como indivíduo e como membro de uma comunidade, e a certeza de que não há um poder constituído para distribuir a justiça (ao contrário, a lesão parte justamente daquele poder cuja autoridade não pode ser reconhecida, porque foi imposta pela força, sendo espoliadora dos bens materiais e espirituais de sua gente, por mais de 300 anos) fundamentam o clamor. Clamor transformado na promessa que o mundo, assombrado, viu cumprir-se 20 anos depois.

A consciência da lesão é inata, como inato é o senso de justiça. Assim, lutar pelos direitos é um dever do interessado para consigo mesmo, seja uma lesão que fere um bem particular, individual, seja uma lesão que fere um bem coletivo. Abdicar dos seus direitos por ignorância e desesperança é aceitar descer ao nível do animal[4] . Adentrar no campo da consciência do homem, em sua capacidade de apreensão do ideal supremo, que é a Justiça (valor absoluto), é mover-se no campo do imponderável. A Justiça se sobrepõe a todos os valores visados por qualquer das regras do Direito.

Ela é a condição primeira de todos eles (valores), a condição transcendental de sua possibilidade como atualização histórica. Ela vale para que todos os valores valham. Não é uma realidade acabada, nem um bem gratuito, mas é, antes, uma intenção radical vinculada às raízes do ser do homem, o único ente que, de maneira originária, é enquanto deve ser[5] .

Pode ser, também, chamada valor-fonte por qualquer sociedade, em qualquer época. Sendo valor, e como tal, subjetiva, torna-se impossível uma identificação científica; é impossível aprisionar a idéia de Justiça para dela emitir um conceito.

Ao dizer que “não pode haver justiça sem homens justos”, Platão antecipa-se no tempo, saltando eras históricas e suas respectivas verdades, e vem concordar com as concepções naturalistas as quais a vêem de forma também objetiva, porque enfocam o homem e a ordem justa instaurada por ele. Ao considerar justo aquilo que está em conformidade com o Direito, é necessário inquirir: o que é de cada um? O que é bem? De que tipo de bem se está tratando? Bem material? Bem espiritual? O que é bem espiritual?

À luz do Direito hebraico e do Direito romano, Rui Barbosa[6] debruça-se numa rara ocasião sobre o processo de Jesus. Com esse estudo, pouco conhecido, produziu belíssima página na qual tocou o cerne da questão relativa à Justiça:

Por seis julgamentos passou Cristo: três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz. Aos olhos dos seus julgadores refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais que bastem para abrigar o Direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados[7] .

Ao confundir-se com a Lei (Direito positivo ou escrito), não se reduz a ela; tem nela o seu referencial e ganha o aparato do Estado para se fazer cumprir. Na medida em que se institucionaliza, constituindo-se na ordem jurídica da sociedade, cuidando dos direitos, não pode afastar-se de sua outra face, a dos valores.

O dever de promover a justiça, que deve estar presente na consciência dos magistrados e de todos aqueles que por vocação ou razão de ofício se dispuseram a fazê-lo, é condição válida tanto para o ano 33 da era cristã, quanto para o tempo atual. No tempo atual, no Brasil em particular, o que não faltam são leis, leis para tudo e para todas as situações. Abrangentes. É da tradição ibero-americana essa necessidade de legislar antecipando-se às situações de fato. Da mesma cultura, provém uma prática de conseqüências danosas: vindo as leis “de cima para baixo”, elas têm de adequar-se às situações mais diversas. Dessa forma, a ignorância da lei e/ou a sua má interpretação geram ajustamentos pouco éticos os quais vão engrossando as legiões dos que duvidam da justiça, na mesma proporção daquelas dos que apostam na impunidade. O excesso e as incoerências da legislação dificultam a ação da justiça e nos colocam diante de um quadro com um aumento assustador da criminalidade. Deve haver um pacto social entre os níveis federal, municipal, estadual e a comunidade para tratarmos do problema com seriedade, mas ninguém parece querer isso.

Vivo perante uma Justiça que ouve falar de injustiças, mas, por ser cega, não as vê; que, sufocada pelo excesso de demanda, demora para resolver coisas grandes e pequenas, condenando-se pela sua própria limitação. Uma Justiça que, pobre[8] e debilitada pela falta de recursos, não tem condições materiais de atualizar-se. Uma Justiça que quer julgar, mas não pode.

Essa não é a minha Justiça[9] .

Minha Justiça não é cega. É uma lady[10] de olhos abertos, ágil, acessível, altiva, democrática e efetiva. Tirando-lhe a venda, eu a liberto para que possa ver[11].

Fonte: Escritório Online


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