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Ensaio sobre Limites da Constituição "Originária" de 1.988, a reforma informal da Carta Política por Mutação Constitucional e o perigo de supervalorização de norma infraconstitucional

09/01/2004
 
Jonny Maikel dos Santos



SUMÁRIO: 1 – Introdução. 2- A “Constituição Originária” de 1.988 possui limites? 3- O entendimento do STF sobre uma norma pode mudar independente de alterações legislativas? 4- A Constituição e a Perigosa Supervalorização de Norma Infraconstitucional. 5- Conclusão.


1 – INTRODUÇÃO.


A mudança de integrantes do STF certamente trará novas visões jurídicas e diversos entendimentos jurisprudências e constitucionais podem ser repensados, mas não em decorrência da simples troca de cadeiras da Corte e sim em conseqüência da reforma da Carta por Mutação Constitucional.

Assim, neste ensaio, cabe falar, resumidamente sobre as seguintes questões.

A “Constituição Originária” de 1.988 possui limites?

O entendimento do STF sobre uma mesma norma pode mudar independente de alterações legislativas?

Qual a conseqüência da supervalorização de normas Infraconstitucionais?

Seguem abaixo as correspondentes anotações.


2- A “CONSTITUIÇÃO ORIGINÁRIA” DE 1.988 POSSUI LIMITES?


Primeiramente, cabe saber se a Constituição Originária de 1.988 possui ou não limites anteriores ao seu nascimento.

Alguns doutrinadores afirmam que a Constituição Originária de 1.988 não encontra limites ou vínculos anteriores a sua formação.

Cabe falar que, historicamente a Constituição de 1.988 não é tão originária quanto se proclama.

Historicamente a Constituição atual somente foi concebida por permissão da antiga Carta, portanto, inicialmente, pode até ser considerada derivada.

Entretanto, de fato, a Constituição de 1.988 é Originária, posto que rompeu totalmente com o regime anterior implantando um novo Estado (Estado Democrático de Direito), modificando todos as bases e sustentáculos jurídicos precedentes.

Portanto, a Constituição de 1.988 revogou totalmente a Carta anterior sem qualquer amarra retrograda. Mas, em que pese inexistir vínculo com a Carta revogada, a Constituição Originária atual, encontra, em cada momento histórico, limites principiológicos intransponíveis.

A escravidão de pessoas, por exemplo, já foi reconhecida legitima; e, pessoas já foram tratadas como objetos pelo nosso ordenamento jurídico, no entanto, mesmo que o Poder Constituinte Originário, por meio de nova Carta, tente restabelecer uma sociedade escravocrata, esta será inaceitável diante dos princípios igualitários acolhidos pela nossa sociedade, bem como da dignidade da pessoa humana.

Todo o poder constituinte seja originário ou derivado encontra limites em princípios universais que devem ser assegurados amplamente como, por exemplo, o direto a vida, a dignidade da pessoa humana e a liberdade em todas as suas dimensões.

Nenhum direito é ilimitado ou absoluto, bem como nenhuma Carta é imodificável, devendo sempre ser resguardada a vontade do povo em determinado momento histórico à luz dos princípios vigentes.

Já, especificamente, sobre os limites ao poder constituinte derivado formal, cabe sinalizar que, estão elencados implícita e explicitamente no art. 60 da CFB/88, sendo desnecessário falar, neste ensaio, sobre tão debatida matéria.

No tópico seguinte tratarei sobre a possibilidade de reforma informal da Constituição por meio da mutação Constitucional e as repercussões desta no âmbito do Judiciário.


3 - O ENTENDIMENTO DO STF SOBRE UMA NORMA PODE MUDAR INDEPENDENTE DE ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS?


O entendimento do Poder Judiciário ou do STF sobre uma norma pode mudar independente de alterações legislativas? Sim, por meio da chamada mutação constitucional.

Diante da atual mudança da composição dos Ministros integrantes do STF, alguns posicionamentos da Corte podem ser alterados, inclusive entendimentos explanados em ações diretas de inconstitucionalidade.

Cabe dizer, desde logo, que, a Constituição Brasileira de 1.988 é rígida quanto a sua alteração formal, no entanto, quanto à interpretação não se pode manter a mesma afirmação.

Os comandos constitucionais caminham de acordo com a simbiose concorrente ou disjuntiva das vontades dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e do Povo em cada momento histórico.

A alteração da Carta Magna pode ocorrer por duas formas:

1º) Reforma formal (no Brasil emenda e revisão – art. 60 da CFB/88 e art. 3º do ADCT); e,

2º) Reforma informal (Mutação Constitucional).

A modificação da interpretação da Constituição é fenômeno menos formal que a emenda e a revisão e não menos importante, mas, pelo contrário, deve ser prestigiada porquanto intimamente ligada ao Judiciário e a realidade social.

Ora, uma interpretação dita constitucional hoje pode não ser amanhã em decorrência da chamada mutação constitucional.

Mutação Constitucional é a reforma informal da Carta Magna à luz da realidade social procedida por meio de interpretação dada pelo Poder Judiciário impulsionada por práticas e movimentos sociais, decisões políticas ou alterações legislativas, modificando, alargando ou restringindo o significado de normas postas ou princípios, em determinado momento histórico, independente de emendas ou revisões formais.

Somente reconheço verdadeira mutação constitucional quando o próprio Judiciário enfrenta normas trazendo para estas novas roupagens, assim afasto o desuso ou revogação tácita de normas do referido conceito.

Normalmente se legisla para o futuro, porém com base no presente, deste modo a norma sempre está correndo atrás da realidade social e cabe ao Judiciário manter a atualidade e vida da legislação lastreada nos anseios sociais.

Em regra, as normas não devem ser descartadas pelo desuso e sim ressuscitas pela visão real e atual do mundo.

O Julgador não pode se desvincular da realidade sob pena de matar as regras normativas pelo seu próprio atraso cultural.

Aos olhos de um desatento, a Constituição de 1.988 pode até parece flexível diante das modificações constantes e rápidas, por emenda constitucional, ao gosto de cada governante do nosso país.

O número de emendas constitucionais de iniciativa do executivo e a edição desmedida de medidas provisórias contribuem para instabilidade jurídica e descrédito do próprio direito constitucional; e, por isto, atualmente, alguns afirmam que a moda do direito constitucional já passou.

Na verdade, o direito constitucional nunca sai de voga principalmente quando a constituição é rígida e altamente principiológica.

Os princípios são a vida do próprio direito.

Sendo a Carta de 1.988 principiológica desnecessária sua reforma constante, bastando ao STF adequar os comandos constitucionais a realidade atual.

Para manter a coerência e a segurança jurídica do ordenamento constitucional pode o STF, excepcionalmente, nos casos de mutação constitucional, rever posições explanadas, até mesmo, em ações diretas no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade; e, especificamente no Brasil, sendo a Constituição cidadã principiológica é legitima e necessária à mutação, posto que os princípios são verdadeiros nômades que se deslocam para a melhor expressão da realidade social.

Ressalto, com base na possibilidade de mutação constitucional, que as ações de controle abstrato de normas não fazem coisa julgada nem no dispositivo e muito menos na fundamentação, assim, nos casos de modificação do antigo entendimento constitucional outrora explanado em ações diretas cabe ao STF, por segurança jurídica, regular os limites e efeitos da nova visão.

Por incrível que pareça, a mutação constitucional (reforma informal) é mais estável que a reforma formal da constituição procedidas por emendas impulsionas ao gosto político de cada Chefe do Executivo.

Não se pode permitir a desfiguração da harmonia da Constituição transformando-a em uma “colcha de retalhos”.

A mutação constitucional é lenta, preserva coerência principiológica e mantêm a credibilidade da Constituição, porquanto preservar a atualidade da Lei Maior e deve ser acolhida sem discriminações.

Até bem pouco tempo atrás, era aceitável e constitucional, aos olhos do Judiciário, a separação racial entre “brancos” e “negros” nos EUA e na África do Sul, porém, por mutação constitucional, este entendimento caiu e não se admite mais naqueles paises este tipo de discriminação.

No Brasil, por exemplo, a visão atual sobre a constitucionalidade da impossibilidade de concessão de liberdade provisória nos casos de crimes hediondos pode mudar, pois o legislador atual sinaliza a valorização da liberdade com a ampliação do rol dos crimes de menor potencial ofensivo e com a ampliação de “penas alternativas”, assim sendo, mesmo sem alteração expressa da própria Lei dos Crimes Hediondos ou da Constituição nova mensagem constitucional pode surgir. Aqui, pode-se ter uma mutação constitucional restringindo o alcance da norma inscrita no art. 5º, inciso XLIII, da CF.

Ainda no nosso ordenamento jurídico, o mandado de injunção pode passar por mutação constitucional à luz do Princípio do Acesso ao Judiciário Justo e, diferente do exemplo acima, ampliar e não restringir a dimensão jurídica da norma.

Exemplo de mutação constitucional sedimentada no Brasil diz respeito ao conceito de casa inscrito no art. 5º, inciso XI, da CFB/88, posto que foi acolhido pelos tribunais em sentido mais amplo, englobando compartimentos externos do imóvel e, em casos específicos, o local de trabalho, alargando a linguagem constitucional inicial.

Vale notar que, no nosso ordenamento jurídico, o conceito sobre a legitimidade dos sindicatos também passou por mutação constitucional.

Os críticos da mutação constitucional falam que este tipo de reforma informal pode trazer insegurança jurídica, mas pior do que não mudar um entendimento incorreto é mantê-lo inconstitucional.

Tudo pode mudar. Até mesmo o entendimento pacífico dos tribunais pode ser alterado. A mudança é inerente à espécie humana e a efetivação de mutações constitucionais depende não somente do Judiciário, mas principalmente dos advogados e do Ministério Público com seus olhares críticos em busca da justiça.

Impor que o STF seja vinculado as suas próprias decisões eternamente ou que estas sejam imutáveis é desconsiderar todos os avanços sociais e momentos históricos, retirando do Judiciário a oportunidade de ressuscitar a própria justiça em sentido amplo.


4- A CONSTITUIÇÃO E A PERIGOSA SUPERVALORIZAÇÃO DE NORMA INFRACONSTITUCIONAL.


A primeira Constituição do Mundo moldada nos parâmetros atuais, com separação dos poderes e da doutrina dos freios e contrapesos (checks and balances), foi a dos EUA (Constituição Americana de 1787), no entanto, naquele período, por não ser a nação americana um estado forte, sua Carta não serviu como paradigma para as demais nações.

A Constituição Americana recebeu a devida atenção do povo americano e foi recebida como lastro e fundamento de todo o respectivo sistema jurídico.

A segunda Constituição, nos moldes atuais, foi a Francesa (Constituição Francesa de 1791 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789), porém já nasceu ser força, porquanto as leis civis burguesas infraconstitucionais foram supervalorizadas e tudo girava em torno da norma infra.

A desigualdade burguesa valorizando cidadãos ativos utilizou a lei como formar de legitimar seus anseios sociais relegando a plano secundário a Magna Carta; e, assim, os Códigos e leis foram supervalorizados.

A Constituição Francesa se mostrou menos forte que a Carta América e as concepções dos sistemas jurídicos tomaram rumos diversos.

Diversamente do sistema francês o ordenamento jurídico americano valorizou a separação dos poderes e o controle de constitucionalidade.

O Brasil, como a maioria das nações, recebeu a Constituição com a concepção francesa, ou seja, em plano secundário.

No Brasil, historicamente, os Códigos também foram mais valorizados que os ditames constitucionais.

As Constituições Brasileiras foram muito maltratadas e somente com a Magna Carta de 1.988 o Brasil teve a plena consciência de buscar a valorização das normas constitucionais.

Durante anos de distração com a Constituição as leis foram consideradas mais importantes e várias concepções errôneas surgiram sobre a Carta Política.

Por exemplo, inexiste na constituição norma programática, porquanto todas as regras constitucionais têm eficácia, nem que seja somente com poder limitador do legislador infraconstitucional.

Muitas interpretações da Constituição foram sempre no sentido de encontrar barreiras para sua plena aplicação. Mas, o pensamento deve ser outro, as leis é que devem beber na fonte da Constituição e não o contrário.

Atualmente há perigo de supervalorização de norma infra no nosso país (por exemplo, o NCC).

O Novo Código Civil é excelente e permanecerá por muitos anos atual em decorrência do grande número de conceitos abertos e vagos.

Mas, ninguém deve se encantar com o Novo Código Civil.

Não se deve supervalorizar o Novo Código Civil e se maravilhar com todos as suas novidades interpretando-o em si mesmo, mas, de forma ampla, em consonância com a Constituição Federal.

A Constituição e o Código Civil sempre ocuparam lugares de destaque no nosso ordenamento jurídico.

Nas últimas décadas a Constituição Federal recebeu merecido lugar de destaque e o Código Civil de 1.916 envelheceu.

Agora, dizem que a Constituição saiu de moda e é a vez do Novo Código Civil.

A supervalorização de Códigos ou Leis infraconstitucionais implica no enfraquecimento da Constituição com demonstrado acima com a Constituição Francesa.

O Novo Código Civil deve ser estudado sempre à luz da Constituição.

Um dos artigos do NCC que tem encantado muitos autores é o 2.035, quando trata dos efeitos dos negócios e demais atos jurídicos.

Segundo o Novo Código Civil, a validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor do atual Código, deve obedecer ao disposto nas leis anteriores referidas no art. 2.045, mas os efeitos, por força do art. 2.035, destes negócios e atos, produzidos após a vigência do Código Atual, serão regidos pelos preceitos da nova ordem jurídica, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução, e, ainda, nos termos do parágrafo único do art. 2.035, nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos pelo Código vigente para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

Acontece que, apesar do avanço do art. 2.035 do NCC este dispositivo infraconstitucional é de constitucionalidade duvidosa (para não falar inconstitucional) por aparente ofensa aos princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito.

A lei não deve prejudicar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

O STF (Informativo nº 317 - Data: 27 de agosto de 2003) tratando de proteção aos princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito no julgamento de Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade versando sobre planos de saúde decidiu que:

(...) “Planos Privados de Assistência à Saúde – 4:
Prosseguindo no mesmo julgamento, o Tribunal, entendendo caracterizada a aparente ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5º, XXXVI), de¬feriu a cautelar para suspender a eficácia do art. 35-G, renumerado como 35-E pela Medida Provisória 2.177/2001, que estabelece a aplicação da Lei 9.656/98 a contratos celebrados anteriormente à data de sua vigência, ressaltando, no entanto, a possibilidade de incidência nos casos concretos do Código de Defesa do Consumidor ou de outras normas de proteção ao consumidor. No que concerne ao § 2º do art. 10 da mesma Lei — que trata da obrigatoriedade da oferta do plano de referência para todos os atuais e futuros consumidores —, o Tribunal, entendendo caracterizada num primeiro exame a inconstitucionalidade por ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, conheceu em parte da ação para afastar a aplicação do mencionado dispositivo aos contratos aperfeiçoados até o dia 3/6/98 (anteriores à edição da Lei 9.656/98); aos contratos aperfeiçoados entre 4/6/98 e 1º/9/98 (ou seja, compreendidos entre a data de edição e a data de vigência da citada Lei), salientando, com relação ao segundo grupo, que, em face da vacatio legis, a norma somente tornou-se obrigatória na data de vigência; e aos contratos aperfeiçoados entre 8/12/98 e 2/12/99 (compreendidos entre a data da entrada em vigor da MP 1.730/98, que dilatou a obrigatoriedade da oferta do plano-referência para 3/12/99, e a data imediatamente anterior àquela fixada na citada MP), já que durante esse período o plano-referência deixara de ser obrigatório. Com relação aos contratos aperfeiçoados entre 2/9/98 e 7/12/98 (ou seja, compreendidos entre a data da vigência da Lei 9.656/98 e a data da edição da Medida Provisória 1.730/98), o Tribunal afastou a tese de inconstitucionalidade, uma vez que durante o mencionado período estiveram plenamente em vigor os preceitos da Lei 9.656/98, implicando a obrigatoriedade da oferta do plano-referência, o mesmo valendo para os contratos aperfeiçoados a¬pós 3/12/99. AD
I 1.931-MC-DF, rel. Min. Maurício Corrêa, 21.8.2003. (ADI-1931)”.

Portanto, cabe ao Judiciário apreciar com cautela as disposições do art. 2.035 do NCC, bem como de qualquer disposição infraconstitucional.

Alerto que, é dever do interprete começar a leitura do Novo Código Civil não pelo seu início, mas pelo livro complementar – das disposições finais e transitórias, sob pena de cometer injustiças e falhas graves, diante das ressalvas e minúcias estabelecidas nos arts. 2.028 a 2.046.

O NCC e as demais leis devem ser interpretados sempre à luz da Constituição e dos princípios constitucionais.

Nenhuma norma infraconstitucional deve ser estudada em si mesma.

A Constituição e seus princípios sempre devem ser a fonte principal do ordenamento.


5- Conclusão.


A mudança dos integrantes do STF certamente trará novas visões jurídicas e diversos entendimentos jurisprudências podem ser repensados, entretanto não em decorrência da simples troca de cadeiras da Corte e sim em conseqüência da Mutação Constitucional.

Os limites reformadores informais e formais da própria Constituição devem ser repensados à luz de princípios universais.

A Constituição e seus limites devem ser repensados com base em princípios universais possibilitando reformas legitimas (formais – emendas/revisões ou informais – mutações constitucionais).

A supervalorização de Códigos ou Leis infraconstitucionais implica no enfraquecimento da Constituição.

A Constituição sempre deve ser o centro do ordenamento jurídico.

Fonte: Escritório Online


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