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Escritório Online :: Petições » Direito Tributário


Parecer - Alíquota mínima do ISSQN e os benefícios fiscais

08/10/2004
 
Omar Augusto Leite Melo



ISSQN. Prefeitura de Bauru. Benefícios Fiscais Que Trazem Uma Redução Indireta na Alíquota Mínima de 2%. Presença de Finalidade Extrafiscal Estimulada pela Constituição. Ausência de “Guerra Fiscal”. EC 37/02. Interpretação Teleológica e Sistemática. Cabimento dos Benefícios>.


OBJETO DA CONSULTA


A Consulente é prestadora de serviços sediada na cidade de Bauru-SP, sujeita ao imposto sobre serviços de qualquer natureza, na alíquota de 2% (dois por cento).

Tendo em vista o disposto no artigo 88, incisos I e II, do ADCT (acrescentado pela Emenda nº 37/02), pelo qual o ISSQN “terá alíquota mínima de dois por cento”, e “não será objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que, resulte, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima”, a presente consulta versa sobre a aplicação, ou não, em favor da Consulente, dos benefícios fiscais previstos pelas Leis Bauruenses nº 3.491/1992 e nº 3.791/1994, concedidos aos contribuintes municipais que possuem pessoas portadoras de deficiência em seu quadro de funcionários, ou que patrocinem o esporte amador, como é o caso da Consulente.

Com efeito, como a Consulente já sofre a tributação do ISSQN em sua alíquota mínima de 2%, de acordo com a Lei Bauruense nº 5.077, de 29/12/2003, a aplicação desses benefícios fiscais previstos nas acima citadas leis municipais implicaria, indiretamente, na redução da carga tributária mínima fixada pela Emenda nº 37/02.

Enfim, a pergunta central desse parecer é a seguinte: a Consulente, na condição de empregadora de deficiente e patrocinadora do esporte amador, pode se beneficiar dos incentivos fiscais previstos em leis municipais bauruenses, sofrendo, assim, uma carga tributária de ISSQN inferior ao limite determinado pela Emenda nº 37/2002?

Eis a questão que passamos a enfrentar na seqüência.


1. Dos Benefícios Fiscais Tratados no Presente Parecer


1.1. Incentivo Fiscal em Favor de Contribuintes Municipais que Contratem Deficientes como Empregados.


A Lei Bauruense nº 3.491, de 19/10/1992, concede descontos de impostos e taxas municipais às empresas que mantiverem em seus quadros de funcionários pessoas portadoras de deficiência física. A recente Lei Municipal nº 5.077, de 29/12/2003, em seu artigo 54, ampliou o benefício para as pessoas portadoras de qualquer deficiência, e não mais apenas a deficiência física, como desigualmente previa o texto legal.[1]

Assim dispõe o artigo 1º, da Lei nº 3.491/92, com a redação atribuída pela Lei nº 5.077/03:

“Art. 1º. As empresas que mantiverem em seus quadros de funcionários pessoas portadoras de deficiência, assim atestado pela Secretaria Municipal da Saúde, gozarão de descontos no pagamento de impostos e taxas municipais”.[2]

O benefício fiscal consiste em um abatimento de 5% (cinco por cento) por deficiente contratado, sobre o valor do tributo, não podendo exceder a 30% (trinta por cento) de desconto. Assim, se o contribuinte possuir quatro empregados portadores de deficiência, terá desconto de 20% (4 x 5%) sobre o valor dos tributos municipais devidos.

No caso do ISSQN cobrado da Consulente, prestadora de serviço submetido à alíquota de 2%, a carga tributária deste imposto pode vir a sofrer rebaixamento para 1,9% (se a empresa tiver um empregado portador de deficiência), ou até 1,4% (no caso de seis ou mais empregados portadores de deficiência) sobre a base de cálculo do imposto.

Por conseguinte, esse benefício fiscal acaba repercutindo diretamente na alíquota mínima fixada pela Emenda nº 37/2002.

Observa-se, facilmente, que o intuito municipal não foi de criar um estímulo fiscal para que empresas prestadoras de serviços se deslocassem de outras cidades para Bauru (enfim, não se apresenta nenhum cunho arrecadatório, caracterizador de uma “guerra fiscal”), mas sim incentivar a contratação de pessoas portadoras de deficiência. Logo, vislumbra-se uma nítida e louvável ação afirmativa neste benefício fiscal.

Com efeito, ao prestigiar a contratação de pessoas portadoras de deficiência, mediante concessão de benefício fiscal, a lei municipal está obedecendo a Constituição Federal, no sentido de concretizar e atender diversos fundamentos e princípios constitucionais.

Neste diapasão, aduzem os seguintes dispositivos constitucionais:

- Artigo 1º, incisos III e IV: o incentivo fiscal encontra fundamento na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho;
- Artigo 3º, incisos I, III e IV: o benefício auxilia na construção de uma sociedade justa e solidária, na erradicação da pobreza e da marginalização, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de qualquer forma de discriminação;
- Artigos 6º e 7º, caput, e XXXI: desconto oportunizado atende o direito social ao trabalho;
- Artigo 23, inciso II: o Município exerceu sua competência de cuidar da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
- Artigo 24, inciso XIV c/c artigo 30, inciso II: o Município exerceu sua competência de legislar especificamente sobre proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência, sem qualquer ingerência à competência federal de legislar sobre normas gerais;
- Artigo 170, caput e inciso VIII: o incentivo fiscal conferido tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observando o princípio da busca do pleno emprego;
- Artigo 193: o legislador municipal buscou atingir a ordem social, com base no primado do trabalho, visando ao bem-estar e à justiça sociais.
- Artigo 203, incisos III e IV: o desconto possui cunho assistencial, viabilizando tanto a integração ao mercado de trabalho, como a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e
- Artigo 204, inciso II: a redução conferida representa uma ação governamental na área da assistência social, convidando a iniciativa privada para participar dessa ação.

Enfim, ao criar o incentivo fiscal ora tratado, o Município de Bauru teve em meta todos os dispositivos constitucionais acima mencionados, que versam sobre princípios e fundamentos do Estado Brasileiro, e sobre direitos constitucionais de pessoas portadoras de deficiência.

Vale frisar que a legislação internacional também se ocupa em privilegiar ações afirmativas que visem ao bem-estar dos portadores de deficiência.

O Decreto Federal nº 3.956, de 8 de outubro de 2001, incorporou no ordenamento pátrio a Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de discriminação contra pessoas portadoras de deficiência, aprovada pelo Decreto-legislativo nº 198, de 16 de junho de 2001. Seu artigo III assim dispõe:

“Artigo III
Para alcançar os objetivos desta Convenção, os Estados Partes comprometem-se a:
1. Tomar as medidas de caráter legislativo, social, educacional, trabalhista, ou de qualquer outra natureza, que sejam necessárias para eliminar a discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência e proporcionar a sua plena integração à sociedade, entre as quais as medidas abaixo enumeradas, que não devem ser consideradas exclusivas:
a) medidas das autoridades governamentais e/ou entidades privadas para eliminar progressivamente a discriminação e promover a integração na prestação ou fornecimento de bens, serviços, instalações, programas e atividades, tais como o emprego, o transporte, as comunicações, a habitação, o lazer, a educação, o esporte, o acesso à justiça e aos serviços policiais e as atividades políticas e de administração; (...)
d) medidas para assegurar que as pessoas encarregadas de aplicar esta Convenção e a legislação interna sobre esta matéria estejam capacitadas a fazê-lo.
2. Trabalhar prioritariamente nas seguintes áreas: (...)
b) detecção e intervenção precoce, tratamento, reabilitação, educação, formação ocupacional e prestação de serviços completos para garantir o melhor nível de independência e qualidade de vida para as pessoas portadoras de deficiência; e
c) sensibilização da população, por meio de campanhas de educação, destinadas a eliminar preconceitos, estereótipos e outras atitudes que atentam contra o direito das pessoas a serem iguais, permitindo desta forma o respeito e a convivência com as pessoas portadoras de deficiência.

Novamente, percebe-se que a legislação municipal preenche as finalidades consagradas pela convenção internacional.

Ademais, analisando a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, criada pela Lei nº 7.853, de 24/10/89, e regulamentada pelo Decreto nº 3.298, de 20/12/99, depreende-se que a legislação tributária bauruense também se atentou para essa ação afirmativa de cunho nacional. Os artigos 1º e 2º do citado decreto aduzem:

“Art. 1º. A Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência compreende o conjunto de orientações normativas que objetivam assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência.
Art 2º Cabe aos órgãos e às entidades do Poder Público assegurar à pessoa portadora de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à previdência social, à assistência social, ao transporte, à edificação pública, à habitação, à cultura, ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem-estar pessoal, social e econômico”.

O parágrafo único do artigo 2º, da Lei nº 7.853/89, prevê expressamente que os órgão e entidades da administração direta e indireta (o que envolve, por conseguinte, os Municípios) devem dispensar, no âmbito de sua competência e finalidade, aos assuntos objetos esta Lei, tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas, na área da formação profissional e do trabalho:

“a) o apoio governamental à formação profissional, a orientação profissional, e a garantia de acesso aos serviços concernentes, inclusive aos cursos regulares voltados à formação profissional;
b) o empenho do Poder Público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial, destinados às pessoas portadoras de deficiência que não tenham acesso aos empregos comuns;
c) a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores públicos e privado, de pessoas portadoras de deficiência;
d) a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras de deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho, e a situação, nelas, das pessoas portadoras de deficiência”.

Por conseguinte, absolutamente louvável e exemplar a conduta da municipalidade, que nada tem a ver com meros oferecimentos fiscais criados para bajular e atrair prestadoras de serviços para seu território, numa atitude anti-federalista e configuradora de uma reprovável guerra fiscal.

Essas considerações serão de extrema valia para o desfecho desse parecer, uma vez que a Emenda nº 37/2002 visou à eliminação e inibição de guerra fiscal entre os Municípios brasileiros, não se voltando contra quaisquer benefícios fiscais que atendam os mandamentos constitucionais, como no caso em apreço.


1.2. Incentivo Fiscal ao Contribuinte que Aplicar até 5% do ISSQN Devido em Apoio ao Esporte Amador.


De acordo com o artigo 1º da Lei Bauruense nº 3.791, de 8/11/94, fica isento em até 5% (cinco por cento) do recolhimento devido a título de ISS - Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza, o contribuinte que efetivamente aplicar o montante relativo a este percentual em favor de pessoa física ou jurídica de natureza esportiva amadora, sem fins lucrativos, cadastrada na Prefeitura Municipal, na forma desta lei.

Na redação atribuída pela Lei nº 4.705, de 23/07/2001, o artigo 2º da Lei nº 3.791/94 prevê que o montante da isenção de que trata esta Lei, obrigatoriamente, deverá ser aplicado em modalidades esportivas nas quais o Município de Bauru tradicionalmente disputa nos Jogos Abertos e Regionais, em Ligas Regionais, Associações, Federações e Confederações,previamente estabelecidas pela Secretaria Municipal de Esportes e Lazer.

Novamente, aqui também se denota a finalidade extrafiscal do benefício legal (redução de 5% do ISSQN devido), em favor diretamente do esporte amador. Afasta-se, assim, o intuito de atiçar uma competição tributária com outro Município (guerra fiscal).

Outrossim, não se pode perder de vista que o esporte constitui, sem sombra de dúvida, em um importante instrumento estimulador da cidadania, da saúde, da qualidade de vida, do desenvolvimento da sociabilidade e das relações interpessoais, da educação etc.

A Constituição Federal não ignora a importância do desporto. Aliás, pelo contrário, em seu artigo 217, dispõe sobre o assunto, trazendo mandamentos que a lei municipal em testilha alcançou com exatidão, se não vejamos:

- O Município honrou o compromisso constitucional de fomentar práticas desportivas formais e não-formais (caput);
- O incentivo reforça a autonomia financeira das entidades desportivas dirigentes e associações (inciso I);
- O benefício fiscal trata diferentemente o esporte amador do profissional, eis que somente a contribuição para o esporte amador gera o direito à isenção (inciso III).

Ademais, analisando as repercussões diretas e indiretas do desporto na sociedade brasileira, vislumbram-se outros atendimentos constitucionais na legislação tributária municipal que conferiu o benefício fiscal em comento. Neste sentido:

- Artigo 1º, incisos II e III: o benefício encontra amparo constitucional no incentivo à cidadania e à dignidade da pessoa humana;
- Artigo 3º, incisos I, III e IV: o desconto fiscal persegue a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; erradicação da pobreza e da marginalização; promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação;
- Artigo 6º: a isenção visa ao atendimento de direitos sociais relacionados à educação, saúde, trabalho e lazer;
- Artigo 170, caput e inciso VIII: o benefício fiscal intenta uma existência digna a todos, observando a busca do pleno emprego;
- Artigo 193: o incentivo conferido atua diretamente na ordem social, com base no primado do trabalho, objetivando o bem-estar e a justiça sociais; e
- Artigo 205: a isenção promove e incentiva indiretamente a educação, mediante colaboração da iniciativa privada, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

A Lei Federal nº 9.615, de 24/03/98, que instituiu normas gerais sobre o desporto, traz importantes afirmações que ratificam a importância do esporte em nosso País, e revelam a seriedade desse incentivo fiscal conferido pela lei tributária bauruense. No §2º do seu artigo 4º, está prescrito que a organização desportiva do País, fundada na liberdade de associação, integra o patrimônio cultural brasileiro e é considerada de elevado interesse social.

Logo, o criativo benefício fiscal proporcionado pela Prefeitura de Bauru, em prol do esporte amador, não envolve a prática de nenhuma medida fiscal representativa de uma guerra fiscal disputada contra qualquer outro Município.

Tal desiderato, certamente, merece atenção especial ao ser confrontado com o texto do artigo 88, do ADTC, atribuído pela Emenda nº 37/2002.


2. Da Emenda nº 37/2002


2.1. Alterações Trazidas pela EC 37/2002 na Competência Tributária Municipal para Fixar Alíquota Mínima do ISSQN


Originalmente, a Carta Constitucional previa a fixação de alíquotas máximas para o ISSQN, por meio de uma lei complementar nacional (artigo 156, §4º, inciso I).

Por meio da Emenda nº 37/2002, criou-se a possibilidade de uma lei complementar também disciplinar acerca das alíquotas mínimas do imposto. Ademais, até o advento dessa lei complementar, o artigo 88, do ADCT, também inserido por essa emenda constitucional, fixou provisoriamente essa alíquota mínima em 2%, com algumas exceções ali estampadas:

“Art. 88. Enquanto lei complementar não disciplinar o disposto nos incisos I e III do §3º do art. 156 da Constituição Federal, o imposto a que se refere o inciso III do caput do mesmo artigo:
I – terá alíquota mínima de dois por cento, exceto para os serviços a que se referem os itens 32, 33 e 34 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei n. 406, de 31 de dezembro de 1968;
II – não será objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resulte, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima estabelecida no inciso I”.

Assim, de acordo com o artigo 88, do ADCT, os Municípios não poderão fixar uma alíquota do ISSQN inferior a 2%, e nem conceder isenções, incentivos e benefícios fiscais que importem em redução reflexa deste percentual, na carga tributária do prestador de serviço.

Todavia, além de sua validade “duvidosa”, em razão de uma violação à autonomia municipal, essa ressalva consignada no artigo 88, do ADCT, deve receber uma interpretação à luz das finalidades perseguidas (interpretação teleológica), a fim de se evitar graves inconstitucionalidades, mediante amputação de princípios e de direitos constitucionais tratados no item anterior deste trabalho. Além disso, o dispositivo deve ser cotejado com todo o sistema constitucional (interpretação sistemática), evitando uma apreciação isolada e literal do seu texto.

Destarte, ainda que se chegue à conclusão de que a Emenda nº 37/2002 passa pelo crivo da Constituição Federal, subsidiariamente, será fundamental apurar o desiderato albergado pela Emenda nº 37/2002 para, na seqüência, definir a aplicação e o alcance do dispositivo em questão.

Com efeito, somente assim será possível concluir se os benefícios fiscais sob discussão podem, ou não, ser gozados pela Consulente.


2.2. Violação à Autonomia Municipal e, Conseqüentemente, ao Princípio Federativo


A Emenda nº 37/2002, ao acrescentar o artigo 88 no ADCT, feriu a autonomia municipal e o pacto federativo, na medida em que interfere e engessa o exercício da competência tributária municipal de instituir o ISSQN.

Com efeito, o artigo 156, inciso III, da Carta Magna, distribuiu para os Municípios a competência de instituir o imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.

Ao atribuir competência tributária para os Municípios de instituir o ISSQN, automaticamente a Lei Maior também lhes conferiu o exercício dessa competência tributária, sem qualquer intromissão federal ou estadual no que tange à fixação de uma alíquota mínima (ou carga tributária mínima).

O §4º, inciso I, do artigo 156, originalmente previa apenas a instituição de uma lei complementar para fixar as alíquotas máximas desse imposto, numa clara e evidente preocupação com a capacidade contributiva dos contribuintes, ou seja, essa previsão visa regular as limitações ao poder de tributar. Ou seja, a intenção é proteger os prestadores de serviços contra alíquotas altas e abusivas que comprometam o desenvolvimento da atividade empresarial.

Agora, o mesmo raciocínio não se pode ter com relação à novel redação dada pela Emenda nº 37/2002, que também prevê o cabimento de uma lei complementar para fixar as alíquotas mínimas do imposto (artigo 156, §3º, inciso I).

Esta nova previsão atinge frontalmente a autonomia municipal, na medida em que restringe o pleno exercício da competência tributária municipal de fixar as alíquotas do ISSQN, dentro do teto máximo previsto em lei complementar.

Por outro lado, denota-se que o intuito da Emenda nº 37/2002, ao fixar essa carga tributária mínima para o ISSQN, não guarda qualquer correlação com a previsão original da Constituição Federal de regular a limitação constitucional ao poder de tributar (capacidade contributiva), mediante fixação de uma alíquota máxima por via de lei complementar. Muito pelo contrário: a alteração questionada acabou prejudicando reflexamente os contribuintes municipais, como é o caso da Consulente.

A ingerência federal na competência tributária municipal não é permitida pela Constituição Federal, nem mesmo por meio de uma emenda constitucional, uma vez que o princípio federativo (por conseguinte, a autonomia municipal) constitui-se em uma cláusula pétrea, de acordo com o artigo 60, §4º, inciso I.

Sobre o tema em voga, assim leciona José Eduardo Soares de Melo[3]:

“O meu pensamento aqui é o seguinte: Será que essa regra não viola o artigo 60, parágrafo 4º da Constituição? Tem sido moda, de uns tempos para cá, e até com grande fundamento jurídico que as emendas constitucionais, por si só, tenham fundamento constitucional dogmático. Nós sabemos que um dos princípios que norteia a cooperação, o grande fundamento de nossa tributação, é que a Constituição é rígida. O artigo 60 parágrafo 4º fala: ‘Olha não é possível a edição de uma emenda tendente a abolir a Federação, a República, a separação dos direitos, a questão do voto e os direito e garantias individuais’.
Então, perguntaria o seguinte: será que essa Emenda Constitucional, na hora em que tirou o teto mínimo do município e vai à Lei Complementar fixar e, agora, a própria Emenda fixou, como eu vou comentar com vocês, será que isso se enquadraria no 60, parágrafo 4º?
Se eu fizer uma leitura muito simples do que pode entender por Federação, vou verificar que os municípios estariam fora da Federação. A Federação pressupõe determinados requisitos. Há um requisito básico, ou seja, é a associação dos estados que forma um determinado estado que é o estado brasileiro. Não vou questionar aqui, não vou examinar conceitualmente o que seja Federação, a ordem parcial ou a ordem total. Mas, na primeira leitura, pode se entender que o município não integra a Federação. E um dos grandes argumentos que têm sido invocados, nesse sentido, é que o município não tem o Judiciário, o município não tem assento no Senado. Mas como a ele se confere a competência de sua autonomia, para ele se auto-regular, como são conferidas competências tributárias às suas receitas, competências funcionais, competências administrativas, parece-me que essa peculiaridade do sistema brasileiro, e estou acompanhado por Michel Temer, Celso Bastos, Luís Alberto de Araújo, no sentido de que, embora não seja nitidamente claro esse enquadramento, essa tipificação do município como um elemento da Federação, parece-me que ele atende à fisionomia federativa. E se assim o é, na hora em que veio essa Emenda Constitucional nº 37, dizendo: ‘O município vai fixar uma alíquota mínima...”. A Lei Complementar vai determinar... Eu entendo que violou essa cláusula que poderia ser denominada uma verdadeira cláusula pétrea, porque não vai se permitir ao município que fixe uma alíquota de 0,25%, uma alíquota de 0,5, uma alíquota de 1%. Obrigatoriamente, ele terá que fixar 2%”.

Por seu turno, Kiyoshi Harada também entende ser inconstitucional a fixação de uma alíquota mínima do ISSQN, imposta pela Emenda nº 37/2002:

“Não nos parece possa o legislador complementar, ou a própria Emenda Constitucional estabelecer alíquota mínima, principalmente, com algumas ressalvas que ferem o principio da isonomia. O campo de atuação da lei complementar, em matéria tributária, está delimitado pelos três incisos do art. 146 da CF: ‘I – dispor sobre conflitos de competência; II – regular limitações constitucionais do poder de tributar; e III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária.’ Fixação de alíquota mínima não tem enquadramento em quaisquer dos incisos referidos, mesmo porque, sendo um elemento quantitativo do imposto, sua mensuração deve ficar a critério do ente político impositivo, respeitadas eventuais limitações estabelecidas pelo legislador constituinte original. Fora as limitações genéricas, aplicáveis aos tributos em geral, a CF, em matéria de imposto sobre serviços, de qualquer natureza, somente estabeleceu duas únicas restrições: definição prévia dos serviços em lei complementar e exclusão dos serviços compreendidos no art. 155, II (serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação), conforme se depreende do seu art.156, inciso III. Daí por que, em nosso entender, a fixação de alíquota mínima pela Emenda nº 37/02 é inconstitucional, por afrontar a competência impositiva do Município, outorgada pelo art. 156, III, da CF. O exercício do poder tributário pelo Município pressupõe liberdade de adotar a política tributária adequada a suas necessidades, com autonomia e independência, como resultado da forma federativa de Estado, proclamada logo em seu art. 1º. Nenhum ente político pode ser obrigado a retirar da sociedade mais do que o necessário à implementação da política governamental. A Carta Política, no §4º do art. 60, proíbe a deliberação da emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado (inciso I). Em relação à fixação da alíquota máxima, por meio de lei complementar, agrave-se ainda mais a inconstitucionalidade. Como se sabe, a expressão tendente a abolir é bem mais abrangente do eu simplesmente abolir. A diminuição do exercício do poder tributário, indispensável para assegurar a autonomia político-administrativa do Município, sem dúvida alguma, afronta do princípio federativo, protegido em nível de cláusula pétrea. Não cabe à lei complementar regular uma limitação que não existe no texto constitucional. Somente à Constituição cabe impor limites a serem regulados por lei complementar”.[4]

Mais resumidamente, Aires F. Barreto escreveu contra a constitucionalidade da Emenda nº 37/2002, na parte em que força a adoção de alíquotas mínimas do ISSQN, esclarecendo que parece, a todos os títulos, que se tem aí afronta ao magno princípio da autonomia municipal. Quem é competente para instituir também o é para isentar, reduzir, incentivar.[5]

No artigo 151, inciso III, da Lei Maior, encontra-se uma vedação expressa à intromissão federal na competência tributária municipal, no sentido de impedir à União instituir isenções de tributos da competência dos Municípios.

Ademais, abundam dispositivos constitucionais que elevam os Municípios ao status de entidades federadas autônomas, especialmente os artigos 1º e 18, pelos quais o Estado Brasileiro é composto pela união indissolúvel dos Estados e Municípios, cuja organização político-administrativa compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

A ressalva final do artigo 18 (nos termos desta Constituição) só vem corroborar a amplitude da autonomia municipal, uma vez que vários artigos da Constituição traçam o perfil federativo do Estado Brasileiro, incluindo os Municípios como uma entidade federada, dotada, por conseguinte, de autonomia financeira.

Tal autonomia financeira foi constitucionalmente conferida aos Municípios pela competência tributária prevista nos artigos 145, 149-A e 156 (incluindo, o ISSQN) e pelas transferências constitucionais dos artigos 153, §5º, II, 158 e 159.

No artigo 2º, inciso I, da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), está prescrito que os Municípios fazem parte da Federação.[6]

Ademais, o cuidado da Constituição Federal em preservar a autonomia financeira e, conseqüentemente, a federação brasileira, no âmbito da competência tributária, pode ser vislumbrada no seu artigo 146, segundo o qual uma lei complementar nacional somente terá cabimento para resolver conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (inciso I), regular as limitações aos poder de tributar (inciso II) e para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes (inciso III, letra a).

Ora, o artigo 88, do ADCT não dispõe sobre conflito de competência nem sobre limitação ao poder de tributar, mas sim força o exercício da competência tributária, bem como não estatui uma norma geral, pois fixar uma alíquota mínima para o imposto implica em descer em detalhes (ou seja, não é nada “gerérico”), em invadir a competência tributária municipal, engessando sua liberdade, sua autonomia.

Sob outro prisma, a imposição criada pelo artigo 88, do ADCT, impede o Município de auto-organizar seu sistema tributário, dentro das condições financeiras peculiares de seus contribuintes (prestadores de serviços), tolhendo a municipalidade de escolher uma alíquota mais compatível à sua realidade, ainda que seja menor que 2% (dois por cento), o que certamente seria mais apropriado para atender o pressuposto tributário da capacidade econômica do prestador de serviço (artigo 145, §1º, da Constituição).

Por todo o exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade da fixação da alíquota mínima para o ISSQN, em 2%, pois uma emenda constitucional não pode restringir a autonomia municipal e, por extensão, ignorar que a Federação brasileira inclui os Municípios como entidades federadas.


3. Inexistência de incompatibilidade entre a Emenda nº 37/2002 e os benefícios fiscais abordados


3.1. Objetivo da Fixação de uma Alíquota Mínima de 2% para o ISSQN, Buscado pela Emenda nº 37/2002


Ainda que a alíquota mínima de 2% seja considerada constitucional, malgrado os argumentos apresentados, subsidiariamente, ainda é cabível discutir a aplicação do artigo 88 do ADCT, relativamente aos benefícios fiscais tratados neste parecer.

É importante confrontar, neste momento, as finalidades pretendidas pela Emenda nº 37/2002 e pelas leis municipais que conferem os benefícios tributários para os contribuintes que possuem, em seu quadro de empregados, pessoas portadoras de deficiência, ou que patrocinem o esporte amador (como é o caso da Consulente).

Inicialmente, conforme já analisado, a fixação da alíquota mínima de 2% para o ISSQN não encontra guarida no artigo 146, da Lei Fundamental. Logo, não se trata de uma norma com finalidade voltada para a resolução de conflitos de competência, regulamentação de limitações constitucionais ao poder de tributar nem para o estabelecimento de normas gerais.

O único e verdadeiro intuito do artigo 88, do ADCT, sem dúvida, foi de evitar guerras fiscais entre os Municípios. Por conseguinte, sua aplicação deve se reduzir à busca de tal finalidade específica. Uma vez ausente a disputa fiscal entre municípios, o dispositivo perde razão de ser.

O inciso I, do artigo 88, do ADCT confirma implicitamente esse desiderato, na medida em que excepciona a aplicação da alíquota mínima para os serviços referidos nos itens 32, 33 e 34 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968.

Os serviços ressalvados são os seguintes:

“32 – Execução, por administração, empreitada ou subempreitada, de construção civil, de obras hidráulicas e outras obras semelhantes e respectiva engenharia consultiva, inclusive serviços auxiliares ou complementares.
33 – Demolição.
34 – Reparação, conservação e reforma de edifícios, estradas, pontes, portos e congêneres”.[7]

Por que será que esses três serviços foram excetuados da alíquota mínima? Porque o artigo 12, alínea b, do Decreto-lei nº 406/68, previa que o local da prestação do serviço de construção civil (aspecto espacial da regra-matriz de incidência do ISSQN) seria o local onde se efetuar a prestação, ou seja, não havia um ambiente propício nem passível de sofrer guerra fiscal.

Por conseguinte, para aqueles serviços expressamente excetuados, não seria necessária a implantação de uma alíquota mínima a ser atentamente observada por todos os Municípios, pois eles não eram atraídos pelos “paraísos fiscais”, é dizer, os serviços relacionados à construção civil não eram objeto de guerra fiscal, na medida em que o fato gerador do ISSQN ocorria onde o serviço fosse efetivamente prestado, e não onde a construtora estivesse estabelecida.

Aliás, esse raciocínio atingido teleologicamente acaba impondo novas reflexões acerca do atual alcance do artigo 88, do ADCT, a partir da vigência da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2004, uma vez que outros serviços passaram a ter como elemento espacial o local da prestação do serviço, e não mais o local onde está situado o estabelecimento da empresa, como se depreende do artigo 3º, incisos II a XXII, da Lei Complementar nº 116/03.

Com efeito, o artigo 3º, incisos II a XXII, da Lei Complementar nº 116/03, já é auto-suficiente para eliminar a disputa fiscal entre os Municípios, quanto aos serviços ali discriminados, prescindindo, portanto, da “ajuda” contemplada pelo artigo 88, do ADCT.

Novamente, vale a pena transcrever a opinião de José Eduardo Soares de Melo (op. cit., p. 136) sobre o porquê da fixação da alíquota mínima de 2%:

“E nós sabemos que o que está por detrás disso, da razão de ser dessa Emenda Constitucional é evitar a manutenção dessa guerra fiscal que decorreu, como todos sabem, da fixação de alíquotas inferiores naqueles municípios que são inexpressivos que atraíram grandes contribuintes do ISS, que lá instalaram as suas sedes ou de forma legal, adequada fisicamente, ou talvez até com burla, com simulação – eu não sei – e, dessa forma, tratando de um modo isonômico, igual, a fixação de alíquotas, não haveria maior problema”.

Portanto, a fixação de uma alíquota mínima de 2% para o ISSQN tem como único objetivo eliminar a disputa fiscal entre os Municípios, impedindo, assim, o surgimento de “paraísos fiscais” para prestadoras de serviços, como também corrobora Kiyoshi Harada (op. cit., p. 426).


3.2. Objetivos contemplados pelos benefícios fiscais das Leis Bauruenses em análise. Cotejo com o Artigo 88, do ADCT


De acordo com os minuciosos comentários investidos nos subitens 1.1 e 1.2 do presente parecer, os benefícios fiscais aqui tratados versam sobre temas consagrados e incentivados pela Constituição Federal de 1988, sem qualquer cunho arrecadatório.

Aliás, como destacado, os incentivos fiscais aqui tratados representam verdadeiras e louváveis ações sociais em prol de pessoas portadoras de deficiência e do esporte amador. Certamente, inúmeros princípios e direitos constitucionais foram criativamente atingidos mediante a concessão do desconto fiscal para o contribuinte bauruense que contrate deficiente (com vínculo empregatício) ou que patrocine o esporte amador.

Logo, percebe-se, mui facilmente, que não existe nenhuma implicação direta nem indireta desses incentivos fiscais a ponto de que prejudicar outros municípios, é dizer, não há de se cogitar em uma guerra fiscal, uma vez que a Prefeitura bauruense não está se tornando um paraíso fiscal por causa das duas benesses tributárias em discussão.

Muito pelo contrário, mediante a aplicação dos dois benefícios em comento, a Prefeitura está provendo substancial e integralmente alguns importantes objetivos tutelados pela Lei Maior, sem mácula a nenhum outro.

Por outro lado, negar aplicação a tais incentivos tributários implicaria em trocar as ações sociais visadas pelas leis bauruenses por “nada”, ou, quiçá, por uma formalidade ou literalidade do texto emendado. Dessa forma, sairia perdendo tanto o Município, como as pessoas portadoras de deficiência e as pessoas que usufruem do esporte amador, ou seja, sairia perdendo tanto a sociedade, como um todo, como a própria Constituição Federal.

Percebe-se, pois, que deve ser buscada uma interpretação sistemática e teleológica do artigo 88, do ADCT, se admitida for sua (questionável) constitucionalidade.

Realmente, o sistema jurídico deve ser considerado como um todo harmônico, coerente, cabendo ao intérprete analisar a norma neste contexto múltiplo de preceitos inseridos num conjunto orgânico, enfatizando-se sempre a finalidade da norma, o resultado colimado pelo legislador, convertendo em realidade o objetivo ideado.[8]

A respeito da interpretação teleológica, Antonio J. Franco de Campos esclarece:

“1. A expressão de Aristóteles perdura no tempo: ‘a natureza não faz nada em vão’. A lei foi entendida em razão de um fim; ela se propõe a um fim – defesa dos interesses da comunidade, ou , em outros termos, do bem comum, segundo Tomás de Aquino. Desses enunciados chega-se à doutrina de Ihering: o fim prático da lei, ou todas as regras de direito se revestem de motivação pragmática, com o objetivo de solucionar as exigências sociais, que as inspiram. Para decidir com exatidão deve o intérprete, além do exame dos termos da norma (art. 111 do CTN) e do pensamento do legislador, examinar a sua ‘conveniência, a oportunidade prática’. O ‘fim prático da norma’ é o elemento de maior importância na interpretação.
2. Julgamos, entretanto, ter sido Leonardo Coviello quem melhor enunciou as bases da doutrina, que poderíamos assim esquematizar: interpretação – elemento fundamental, fim prático da norma; objeto – satisfação das necessidades sociais do momento. Mas descobrir a ratio é operação delicada, pondera Longo. Betti, em sua clássica obra, distingue dois momentos: o lógico e o teleológico da norma.
3. A aplicação da norma a um fato é uma correlação e resulta efeitos. O intérprete deve indicar o como e o porquê da correlação; como, momento lógico; o porquê, momento teleológico. Em síntese, a orientação prende-se à ‘fidelidade à lei como sendo um método teleológico’”.[9]

Por meio desse método de interpretação, pautado nas finalidades das normas jurídicas estudadas neste trabalho, constata-se a total compatibilidade entre os benefícios fiscais voltados para os portadores de deficiência e para o esporte amador e a não-aplicação da alíquota mínima de 2% do ISSQN, uma vez ausente qualquer disputa fiscal que ensejasse a aplicação do (inconstitucional) artigo 88, do ADCT.

No tocante à interpretação sistemática, que se faz de acordo com o contexto, levando em consideração os diversos textos que se interligam na disciplinação de determinada matéria[10], são inesquecíveis as lições de Alfredo Augusto Becker, extraídas de sua obra clássica “Teoria Geral do Direito Tributário”, 3ª edição, São Paulo, Lejus, 1998, p. 115-116, pertinentes ao cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico:

“A lei considerada em si mesma, como um ser isolado, não existe como regra jurídica. Isolada em si mesma, a lei existe apenas como fórmula literal legislativa sem conteúdo jurídico ou como simples fenômeno histórico. A lei não é um pássaro que o legislador solta abrindo as portas do Congresso. A lei tributária não é um falcão real que do punho do Executivo alça vôo para ir à caça do ‘fato gerador’. A regra jurídica contida na lei (fórmula literal legislativa) é a resultante lógica de um complexo de ações e reações que se processam no sistema jurídico onde foi promulgada. A lei age sobre as demais leis do sistema, estas, por sua vez, reagem; a resultante lógica é a verdadeira regra jurídica da lei que provocou o impacto inicial.
Estas ações e reações se processam tanto no plano vertical (interpretação histórica) quanto no plano horizontal (interpretação sistemática). Esta fenomenologia da regra jurídica é observada à luz do cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico e que consiste em síntese: extrair a regra jurídica contida na lei, relacionando esta com as demais leis do sistema jurídico vigente (plano horizontal) e sistemas jurídicos antecedentes (plano vertical)”.

Destarte, além de perseguir a finalidade prática desejada pelo artigo 88 do ADCT (evitar guerra fiscal), é absolutamente imprescindível a interpretação sistemática e conjugada deste dispositivo com aqueles diversos artigos constitucionais “iluminados” e concretizados pelas leis bauruenses que concederam os incentivos fiscais em comento neste parecer.[11]

Conforme já abordado, é totalmente cabível a aplicação dos incentivos fiscais bauruenses em testilha, sem qualquer violação ao artigo 88 do ADCT, uma vez que não são incompatíveis.

De fato, não é nada complicado perceber a integração dos benefícios fiscais concedidos pelas Leis Bauruenses nº 3.491/92 e nº 3.791/94 com o artigo 88 do ADCT, abarcando o ensinamento de Celso, segundo o qual é contra o Direito julgar ou emitir parecer, tendo diante dos olhos, ao invés da lei em conjunto, só uma parte da mesma (Digesto, I, 3, 24).

Por outro lado, exclui-se a aplicação do artigo 111, do Código Tributário Nacional, no caso em comento (que impõe uma interpretação literal sobre a legislação tributária que disponha sobre isenção), pois não são as leis municipais que estão sendo objeto de interpretação teleológica e sistemática (pessoas beneficiadas, tributos envolvidos, limites, descontos obtidos, prazos etc.), mas sim o artigo 88 do ADCT.

Aliás, as leis municipais abordadas são suficientemente claras ao disciplinar os descontos sobre o ISSQN devido. A interpretação literal deve ser utilizada tão-somente para se detectar os contribuintes beneficiários, percentuais de descontos, tributos compreendidos, procedimentos administrativos, aplicação do valor dedutível etc. Enfim, a literalidade é aplicada na interpretação das próprias leis criadoras das benesses tributárias.

Agora, foi feita toda uma explanação acerca das interpretações sistemática e teleológica apenas para revelar a total compatibilidade entre os benefícios fiscais municipais sob discussão e o artigo 88 do ADCT.

Em outras palavras, quem se submeteu às interpretações teleológica e sistemática foi o artigo 88 do ADCT, quando, então, apurou-se a finalidade exclusiva de acabar ou inibir as guerras fiscais. Entretanto, para saber se os benefícios fiscais pretendidos pela Consulente podem, ou não, ser aproveitados à luz daquele dispositivo acrescentado pela Emenda nº 37/2002, mister se fez captar as intenções municipais com as leis tributárias em voga.

Em suma, é totalmente possível o gozo da redução tributária do ISSQN em favor dos contribuintes bauruenses que contratem pessoas portadoras de deficiência como empregados, ou que patrocinem o esporte amador, ainda que isso importe carga tributária inferior à alíquota mínima de 2% (artigo 88, inciso I, ADCT), em total consonância com o texto constitucional.


4. Resposta e considerações finais


A pergunta nuclear do presente parecer é a seguinte:

A Consulente, na condição de empregadora de deficiente e patrocinadora do esporte amador, pode se beneficiar dos incentivos fiscais previstos em leis municipais bauruenses, sofrendo, assim, uma carga tributária de ISSQN inferior ao limite determinado pela Emenda nº 37/2002?

A resposta é afirmativa, ou seja, a Consulente, mesmo sofrendo a incidência do ISSQN na alíquota de 2% (dois por cento), tem o direito de descontar o ISSQN devido, na proporção de 5% (cinco por cento) para cada empregado portador de deficiência (dentro no limite legal de até 30%), bem como de abater até 5% (cinco por cento) do ISSQN devido, referentemente às aplicações (patrocínios) realizadas em prol do esporte amador, observando-se, obviamente, todos os ditames fixados pelas legislações municipais de regência.

Chegou-se a esta conclusão, em primeiro lugar, tendo em vista a inconstitucionalidade do artigo 88 do ADCT, inserido pela Emenda nº 37/2002, por afrontar a autonomia municipal e, por decorrência, o princípio federativo.

Subsidiariamente, com base no estudo e no confronto das finalidades perseguidas pelos benefícios fiscais em comento e pelo artigo 88 do ADCT, não se visualizou nenhum impedimento constitucional para a aplicação desses abatimentos fiscais, é dizer, a imposição da alíquota mínima não deve ser aplicada contra a Consulente, uma vez ausente qualquer indício ou intuito de disputa fiscal (cunho arrecadatório) nos incentivos em estudo, mas sim, pelo contrário, está-se diante de uma louvável e criativa ação social tutelada e prestigiada pela Constituição Federal.

Este é o meu parecer sobre o caso consultado.

Bauru-SP, outubro de 2004.


Notas do texto:


[1] A propósito, Francisco Ramos Mangieri, eminente auditor fiscal da Prefeitura de Bauru, em sua obra “O Novo ISS do Município de Bauru”, Bauru, editora do Autor, 2004, p. 100, comenta que o presente artigo [artigo 54,da Lei nº 5.077/03] corrige uma situação de desigualdade verificada na Lei Municipal nº 3.491/1992, uma vez que, ao se referir simplesmente ao gênero “deficiência”, acaba abarcando todas as suas espécies (física, auditiva, visual, mental e múltipla) e não mais somente os deficientes físicos. Assim, a partir da alteração, o empregador que contratar pessoas portadoras de qualquer espécie de deficiência, fará jus à benesse de que cuida a lei em questão. Necessária a mudança, já que a própria Constituição da República trata igualmente todos os tipos de deficiência.

[2] A redação original do dispositivo era a seguinte: Art. 1º. As empresas que mantiverem em seus quadros de funcionários pessoas portadoras de deficiência físicas gozarão de descontos no pagamento e impostos e taxas municipais.

[3] Palestra proferida no X Simpósio do IET/ISS, intitulada Questões Atuais do ISSQN, cujo texto foi publicado pela “Revista de Estudos Tributários” nº 31, maio-junho de 2003, p. 135-136.

[4] Direito Financeiro e Tributário, 12ª edição, São Paulo, Atlas, 2004, p. 426-427.

[5] O ISS na Constituição e na Lei, São Paulo, Dialética, 2003, p. 345.

[6] Art. 2º. Para os efeitos desta Lei Complementar, entende-se como: I – ente da Federação: a União, cada Estado, o Distrito Federal e cada Município.

[7] De acordo com a nova lista de serviços, anexa à Lei Complementar nº 116, de 31/07/2004, esses serviços estão previstos nos subitens 7.02, 7.03, 7.04 e 7.05.

[8] José Eduardo Soares de Melo, “Interpretação e Integração da Legislação Tributária” in “Curso de Direito Tributário”, coord. Ives Gandra da Silva Martins, 7ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 139-140.

[9] “Interpretação e Integração da Legislação Tributária”, in “Comentários ao Código Tributário Nacional”, coord. Ives Gandra da Silva Martins, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 64-65.

[10] Kiyoshi Harada, op. cit., p. 440.

[11] Ver subitens 1.1 e 1.2 deste parecer.

Fonte: Escritório Online


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