O mandado de segurança, como bem sabemos, é uma criação doutrinária e legal do ordenamento jurídico pátrio, figurando entre os direitos e garantias fundamentais, esboçados no artigo 5º, inciso LXIX da Carta Magna, tendo como objetivo precípuo à resolução eficaz de situações jurídicas controvertidas, sendo desnecessária a via crucis do procedimento ordinário, diga-se por oportuno, tão desacreditado nos dias atuais.
Porém para uma melhor compreensão do nosso breve estudo, necessário se faz uma análise do instituto do mandado de segurança, ao menos em sua forma conceitual, visto que trataremos das vedações à concessão de medida liminar no mandado de segurança.
Na balizada lição do mestre Hely Lopes Meirelles (2004, p. 21):
Mandado de segurança é o meio constitucional posto a disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção do direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou hábeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça (artigo 1º da Lei nº 1.533/51 e Constituição Federal, artigo 5º, LXIX e LXX).
Alfredo Buzaid, in Do Mandado de Segurança, vol. I, 1989, Ed. Saraiva, p. 67, afirma categoricamente que no mandado de segurança “a sua característica fundamental consiste na possibilidade de compelir a autoridade pública a praticar ou deixar de praticar algum ato”. Já Luiz Eulálio de Bueno Vidigal (1953, p. 199), acertadamente qualifica o mandamus como:
Um remédio que cabe ao particular para anular as medidas de execução, possessórias ou acautelatórias, que a administração pode, sem intervenção judicial efetivar. O mandado de segurança é, para usar de uma metáfora, o antídoto dessas medidas e por ser uma contramedida de execução é que se denomina mandado de segurança.
A concessão da medida liminar no mandado de segurança, sempre foi matéria de estudo dos grandes doutrinadores e até a presente data desafia a jurisprudência face sua extrema sensibilidade. Vamos nos limitar, portanto, como dito anteriormente, às hipóteses em que a legislação infraconstitucional proíbe a concessão de medida liminar e sua repercussão junto ao texto constitucional.
O artigo 7º da Lei 1.533/51, que disciplina o mandado de segurança em seu inciso II, prescreve que:
Art. 7º. Ao despachar a inicial, o juiz ordenará:
II – que se suspenda o ato que deu motivo ao pedido, quando for relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja deferida.
Desse modo, depreende-se do texto da lei nº 1.533/51 que somente este traz previsão expressa da possibilidade da concessão de medida liminar em mandado de segurança, sendo omisso o texto constitucional.
Como bem redige Luiz Orione Neto (2002, p. 310):
Não obstante essa tradição da Constituição brasileira de não prever a concessão expressa de liminar no âmbito do writ, é incontroverso que a liminar é inerente ao instituto do mandado de segurança. De nada adiantaria ele ser um instrumento de garantia contra atos ilegais de autoridade pública se muitas vezes, ao final, a prestação jurisdicional se apresentasse totalmente ineficaz”.
Arruda Alvim Netto, in Anotações sobre a medida liminar em mandado de segurança, RP 39/12, leciona que: “Em quase cem por cento dos casos, quem impetra uma segurança quer uma medida liminar”. (grifo nosso)
Ocorre que em nosso ordenamento jurídico está carregado por normas impeditivas para a concessão de medida liminar, contrariando o direito à adequada tutela jurisdicional.
A lei nº 2.770 de 04 de Maio de 1956 PROÍBE a concessão da medida liminar nas ações e procedimentos judiciais de qualquer natureza que visem a obter liberação de mercadorias, bens ou coisas de procedência estrangeira (artigo 1º). Para Hely Lopes Meirelles (2004, p. 81):
Essa vedação só se refere a produtos de contrabando e não aos bens importados ou trazidos para o país como bagagem sobre os quais as autoridades passem a fazer exigências ilegais ou abusivas para seu desembaraço.
Já a lei nº 4.348 de 26.06.1964 VEDA a liminar em mandados de segurança que visem à reclassificação ou equiparação de servidores públicos, ou à concessão de aumento ou extensão de vantagens e nestas ações só permite a execução da sentença depois de transitada em julgado (artigo 5º e parágrafo único da referida lei). Novamente de forma sábia, o saudoso Hely Lopes (2004, p. 81) tecendo comentários acerca do tema, brilhantemente aduziu:
Estes preceitos são extensivos aos servidores de todas as entidades estatais e suas autarquias, dada a generalidade da norma. Redundantemente, o artigo 7º desta mesma lei diz que os recursos de ofício ou voluntários em tais casos, terão efeito suspensivo, o que já estava implícito no texto do parágrafo único do artigo 5º. Tais restrições se nos afiguram inconstitucionais, por desigualarem os impetrantes no mandado de segurança, em detrimento do servidor público, quando a Constituição da República não faz essa distinção ao instituir o mandamus. (grifo nosso)
A lei nº 4.862/65, em seu artigo 51 revogou o artigo 39 da Lei nº 4.357/64 que proibia a medida liminar em matéria fiscal contra a Fazenda Nacional, passando a admiti-la, pelo tempo limitado de 60 (sessenta) dias.
Data maxima venia permitimo-nos aqui externar nossa indignação aos prazos de eficácia da medida liminar. É inviável que ainda presentes os requisitos ensejadores da medida sua eficácia seja tolhida, beneficiando-se tão somente o Poder Público. Agindo deste modo, estaríamos ferindo o Princípio do Interesse Público, que é bem diferente do interesse do Poder Público. E assim a aplicação da lei em nada contribuirá para o benefício da coletividade, atribuir-se prazo a eficácia da medida liminar, como fez a Lei nº 4.348/64 em seu artigo 1º, alínea “b” é desconsiderar que o mandado de segurança rege-se pela presença continua e inseparável de dois princípios consagrados. Ora, atribuir prazo a medida liminar, considerando-a INEFICAZ após 90 (noventa) dias, ou mesmo com uma prorrogação de 30 (trinta) dias verificado o acúmulo de processos, em nenhuma hipótese justifica a adoção de tal medida contrária ao Direito e ao titular de direito líquido e certo.
Por sua vez a Lei nº 5.021 de 09 de Junho de 1966, VEDOU a concessão de liminar para o pagamento de vencimentos ou vantagens pecuniárias a servidores da União, dos Estados ou dos Municípios e de suas autarquias (artigo 1º, § 4º). Informa-nos Hely Lopes (2004, p. 81) que “essa proibição, embora discriminatória, vem sendo atendida pela Justiça por se tratar de norma processual da exclusiva competência federal”.
Não bastasse, a situação se agrava com a edição de diversas medidas provisórias visando a suspensão de concessão de medidas liminares por um determinado lapso de tempo.
Ocorre que a Constituição Republicana de 1988 traz em seu bojo que o homem tem direito constitucional à adequada tutela jurisdicional, daí se incluem também as medidas liminares, em face do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, consagrado no artigo 5º, XXXV: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Em sua obra, Tratado de Direito Processual Civil, Ed. RT, 2ª ed. 1990, vol. I, p.155, o ilustre Professor Arruda Alvim leciona:
Isto quer dizer que nenhuma lesão ou mera ameaça de lesão de direito individual ou não, pode ser por lei infraconstitucional subtraída do conhecimento do Poder Judiciário; decorre disto necessariamente, que a jurisdição é aquela que é exercida por Juizes de Direito, dos diversos graus de jurisdição existentes e com as garantias tradicionais da magistratura. (grifo nosso)
No mesmo sentido José Cretela Júnior (1989, p. 436): Nenhuma lesão a texto de lei poderá ser excluída de apreciação jurisdicional (...) o texto da lei ordinária que declarar a exclusão é eivado de inconstitucionalidade.
O direito à tutela jurisdicional não pode encontrar óbice em uma legislação que fere as premissas do Estado Democrático de Direito. Para Luiz Guilherme Marinoni, in O Direito à adequada Tutela Jurisdicional (RT 663/245): “Suprimir o direito constitucional à liminar é o mesmo que legitimar a autotutela privada”.
Luiz Orione Neto (2002, p. 406) de forma clara assenta o entendimento dotado de magnífica inteligência, ao concluir que:
“No caso específico do mandado de segurança, tido como um remédio constitucional, se examinado através da ótica da efetividade do processo, jamais poderá ser admitido com a supressão do instrumento propício a tutela contra o periculum in mora, sob pena de deixar de ser um relevante remédio constitucional posto a serviço do homem, para tornar-se um procedimento contraditório, por pressupor tutela urgente e, ao mesmo tempo, não dispor de instrumento necessário para realizá-la. Se o mandamus requer procedimento célere, a possibilidade da aferição da eventual periclitação, em virtude do periculum in mora, do direito que através dele se visa proteger, evidentemente não pode ser suprimida por norma alguma”.
Celso Antônio Bandeira de Melo (1986, p. 31-2) afirma que o mandado de segurança detém “cunho muito específico constitucional de realização completa ou de proteção completa de objetivos transfundidos no Estado de Direito”.
Operando-se a medida proibitiva no campo das liminares, não resta dúvida de que há ofensa literal à Constituição da República, conforme leciona Luiz Orione Neto (2002, p.406): “Impedir-se ao Poder Judiciário o uso de seus poderes implícitos fere o princípio da separação dos poderes, consagrado no artigo 2º da Lei Suprema”.
Por fim, é certo que não resiste qualquer possibilidade ainda que intrínseca de constitucionalidade da norma impeditiva da concessão de liminar, em face da patente agressão ao artigo 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988.
Na melhor lição de Francisco Barros Dias (RP 59/125-134):
Essa inconstitucionalidade compreende os textos de leis anteriores à vigência da atual constituição e os que vieram a ser editados após a sua promulgação. Os primeiros, por serem incompatíveis com a nova ordem constitucional e, por isso, ser impossível aplicar o princípio da recepção; e, os demais, por terem vindo ao mundo jurídico natimortos.
Nada mais coerente do que colacionar as imortais lições do mestre Rui Barbosa (2004, p.43) para engrandecer a idéia propícia da tutela jurisdicional como princípio basilar de um Estado Democrático de Direito:
Que extraordinário, que imensurável, que, por assim dizer, estupendo e sobre humano, logo, não será em tais condições, o papel da justiça! Maior que o da própria legislação. Porque, se dignos são os juízes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis em sendo justas lhes manterão eles a sua justiça e injustas, lhes poderão moderar, se não, até no seu tanto, corrigir a injustiça.
E continua de forma majestosa, o inesquecível mestre Rui Barbosa (2004, p. 43) nos mostrando a impossibilidade de absurdos legislativos prevalecerem sobre o nosso ordenamento jurídico: “De nada aproveitam leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra os abusos; e o amparo sobre todo essencial o de uma justiça tão alta no seu poder, quanto na sua missão”.
Bibliografia
ARRUDA ALVIM NETTO, José Manoel de. Anotações sobre medida liminar em mandado de segurança, RP 39/16-26.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Ato Coator, Mandado de Segurança, Porto Alegre, 1986.
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Russel, 2004.
BUENO VIDIGAL, Luis Eulalio de. Mandado de Segurança.São Paulo, 1953.
BUZAID, Alfredo. Do mandado de Segurança, vol. I, São Paulo: Saraiva, 1989.
CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988. Forense Universitária, 1989, vol I.
DIAS, Francisco Barros. Inconstitucionalidade das normas impeditivas de liminares. RP 59/125-134.
MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à adequada tutela jurisdicional, RT 663/245.
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança – Ação Popular – Ação Civil Pública – Mandado de Injunção – “Hábeas Data” – 27ª ed. atualizada por Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes, São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
ORIONE NETO, Luiz. Liminares no processo civil e legislação processual civil extravagante. 2ª ed. São Paulo: Editora Método, 2002.
Fonte: Escritório Online
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