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Escritório Online :: Artigos » Direito Processual Civil


Análise de caso jurisprudencial versando sobre as condições da ação

20/10/2005
 
Márcio Eduardo Denck Corrêa



1. INTRODUÇÃO


Pretende este trabalho fazer uma análise sobre um acórdão emanado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no qual restou resolvida uma lide que fora extinta sem julgamento de mérito por inépcia da petição inicial, causada pela falta de condições da ação.

Partindo desse caso, faremos uma dissertação doutrinária e legal sobre as condições da ação, traçando seus fundamentos, conceitos e aplicabilidades.

Por fim, exposto o fato e o estudo, sem qualquer pretensão de lapidar a decisão judicial, procuraremos dar um parecer acerca da sentença proferida pelo egrégio tribunal.


2. CASO JURISPRUDENCIAL


A seguir, transcrevemos o acórdão da 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, consoante ao processo nº 70011573078.

Optamos por preservar a formatação original do texto do tribunal, inclusive com os grifos e referências bibliográficas, por considerarmo-los importantes para a correta leitura da decisão judicial.

Segue o inteiro teor do acórdão:

AÇÃO DE CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO. ANÚNCIO DE VENDA DE AUTOMÓVEL VEICULADO EM JORNAL. ALEGAÇÃO DE PROPAGANDA ENGANOSA AFASTADA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. DESVIRTUAMENTO DOS PRINCÍPIOS CONSTANTES DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

A solução do caso em exame encontra guarida no princípio da boa-fé objetiva que deve permear todas as relações jurídicas já que referido paradigma significa agir com lealdade em atuação refletida, sem abuso da parte contrária como ocorrido no caso em exame.

LITIGANCIA DE MÁ-FÉ. CARACTERIZAÇÃO.

Reputa-se litigante de má-fé, aquele que usar do processo para conseguir objetivo ilegal. Aplicação das penas de litigante de má-fé com a condenação ao pagamento de multa prevista no artigo 18 do CPC no equivalente 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa.

VALOR DA CAUSA. CORREÇÃO DE OFÍCIO.

As regras que dispõem sobre o valor da causa (artigos 258, 259 e 260 do Código de Processo Civil), se constituem em matéria de ordem pública, sendo viável, portanto, a sua correção ex oficio pelo juiz.

APELO NÃO PROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Magistrados integrantes da Décima Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao apelo.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. PAULO AUGUSTO MONTE LOPES (PRESIDENTE) E DRA. ANA BEATRIZ ISER.

Porto Alegre, 01 de junho de 2005.

DES. CLAUDIR FIDELIS FACCENDA,

Relator.


RELATÓRIO

DES. CLAUDIR FIDELIS FACCENDA (RELATOR)


JORGE ALENCASTRO DE OLIVEIRA JUNIOR, nos autos da ação de cumprimento de obrigação de fazer que move contra SAN MARINO VEÍCULOS LTDA, apela da r. sentença de fls. 64 a 67 que indeferiu a inicial com base no artigo 267, inciso I cumulado com o artigo 295, incisos II e III, ambos do CPC. A concessão do benefício da AJG ficou condicionada a comprovação atualizada dos rendimentos do autor.

Na inicial da ação, fls. 02 e seguintes, e nas razões de apelo, fls. 69 a 92, relata, o demandante, que durante quatro semanas, verificou anúncios veiculados em edições do jornal Zero Hora, suplemento sobre rodas, referente à venda de automóveis e verificou a oferta do automóvel Alfa Romeu pelo preço de US$ 59,30. Narra que em data de 03 de setembro de 2004 enviou para a demandada, uma correspondência “oficializando a compra de um automóvel da marca Alfa Romeo, modelo 166, 3.0, V 6, ano 2004, zero Km, importado da Itália, cor azul metálico ou qualquer outra cor, caso estivesse em falta a cor supracitada, no valor financeiro de US$ 59,30 (cinqüenta e nove dólares e trinta centavos), com pagamento pelo preço a vista”. Afirma que em 27 de setembro de 2004, recebeu resposta da demandada alegando que não é responsável pelas publicações mencionadas já que é apenas a anunciante, a exemplo das demais concessionárias de veículos que também figuraram no anúncio e que o valor estabelecido no quadro de preços deve ser lido em milhar, multiplicado por mil, conforme disposto no próprio anúncio, na parte superior à esquerda.

Sustenta que no caso dos autos restou caracterizada a publicidade enganosa e que é dever do anunciante efetivar o controle e vigilância de toda a informação ou publicidade que é veiculada em seu nome em qualquer jornal do País ou em outro meio de comunicação. Alega que como consumidor tem o “direito de exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade, por parte da empresa-Apelada”. Alega a aplicação dos artigos 30, 31, 35 e 37, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor que consagrou o princípio da vinculação, segundo a qual o fornecedor está obrigado a entregar exatamente aquilo que ofertou por meio de informação ou publicidade. Postula, dessa forma, que a apelada seja compelida a vender o “produto que efetivamente ofertou ou anunciou no Jornal Zero Hora, durante o período mencionado, ou seja, o Automóvel da Marca Alfa Romeo, Modelo 166, 3.0, V6, ano 2004, Zero Km, importado (Itália), cor azul metálico ou qualquer outra cor, caso esteja em falta a cor supracitada, no valor financeiro efetivo de US$ 59,30 (cinqüenta e nove dólares e trinta centavos), que convertendo para o “Real” passa automaticamente para R$ 171,97 (cento e setenta e um reais e noventa e sete centavos), com pagamento pelo preço a vista.” (fls. 82). Ao final, requer a antecipação dos efeitos da tutela com base no artigo 273, do CPC e artigo 84, § 3º, do CDC para que a apelada cumpra “seu dever de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (art. 35, I, CDC);”.

Foi deferida a AJG ao apelante e recebida a apelação tendo sido ordenada a subida dos autos a esta Corte nos termos do parágrafo único do artigo 296, do CPC (fls. 97).

É o relatório.

VOTOS

DES. CLAUDIR FIDELIS FACCENDA (RELATOR)


Com efeito, do exame dos autos, verifica-se que o apelo não procede. A pretensão do demandante não encontra guarida no ordenamento jurídico uma vez que é prenhe de má-fé. O Magistrado “a quo”, em sua r. sentença fulminou a pretensão do apelante em virtude do descompasso enorme entre a pretensão do autor e o valor do [1] bem que o mesmo pretende adquirir.

O autor pretende que a demandada seja compelida a vender um automóvel Alfa Romeo, modelo 166, 3.0, V6, ano 2004, zero km, importado da Itália pelo preço de R$ 171,97 (cento e setenta e um reais e noventa e sete centavos). Segundo sustenta, a demandada veiculou no jornal Zero Hora, em 4 edições, anúncios de venda do referido automóvel pelo preço de US$ 59,30 (cinqüenta e nove dólares e trinta centavos). Assim, com a cotação do dólar americano no valor de R$ 2,90 (dia 09 de setembro de 2004), pretende adquirir o luxuoso automóvel pela quantia de R$ 171,97. Alega a obrigatoriedade da apelada em cumprir com o anunciado na conformidade do que dispõe o artigo 30 e 35 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Inicialmente cumpre salientar que, ao contrário do que informado e disposto pelo apelante na petição inicial e nas razões de apelo, os anúncios veiculados pela apelada foram corretamente publicados, apresentando de forma clara os preços dos automóveis lá anunciados.

Do exame dos autos, depreende-se que a informação essencial para que o “homem médio” pudesse ter o real alcance da proposta da apelada constava do anúncio. A própria resposta da apelada, à carta do recorrente, fls. 32, por si só já bastaria para que se esclarecesse o preço de venda do veículo, afastando-se a tentativa do apelante de realizar o verdadeiro “negócio da china” que pretende, com extraordinária vantagem pessoal em flagrante prejuízo da apelada e em detrimento da boa-fé.

No referido documento, fls. 32, a apelada assim responde ao recorrente:

“(...)

No entanto, na qualidade de leitor de Zero Hora – Caderno Sobre Rodas/Indicadores assim como Vossa Senhoria, se verifica nas referidas reportagens, que o valor estabelecido no quadro de preços deve ser lido em milhar, ou seja, multiplicado por mil, conforme o disposto no explicativo (*), situado na parte superior à esquerda das reportagens.”
grifei

Nos anúncios, fls. 33, 34 e 38 a 42, constam, de forma clara e expressa que os preços dos carros devem ser lidos em milhar, ou seja, multiplicados por mil, conforme dispõe a parte explicativa da propaganda. Saliento ainda, que em alguns anúncios, fls. 34 e 42, o preço do automóvel que o recorrente pretende adquirir consta, além da explicação, o valor de US$ 59.300, ou seja, cinqüenta e nove mil e trezentos dólares. Assim, deve ser afastada a alegação do autor de que a propaganda veiculada pela demandada foi enganosa, fazendo-o entender que o valor do automóvel seria de apenas US$ 59,30 ou mesmo, como pretende o recorrente, R$ 171,97. Até mesmo porque, como o próprio recorrente manifestou em sua petição inicial, fls. 03, primeiro parágrafo, os preços estavam realmente “irrisórios”. Além disso, como se tal circunstância não bastasse para a real cognição do apelante que se qualifica como Professor, a discrepância entre o valor do bem e o valor por ele ofertado para compra é imensa o que caracteriza a sua atitude, sem sombra de dúvida, como maldosa com a nítida pretensão de levar vantagem em um negócio que o recorrente deve ter visto como sendo “da china”.

Vejamos um excerto da r. sentença, fls. 66:

“Por outro lado, também não se faz presente o interesse processual. De fato, resulta por demais evidente que o preço dos veículos, tanto novos como usados, encontrava-se em milhar na ocasião dos anúncios elencados na peça vestibular.

(...)

Na hipótese em mesa, o contrato pretendido pelo autor não é de importação, mas sim de compra do veículo diretamente da revenda situada nesta Capital, aplicando-se, estritamente, a vedação à contratação de pagamento em dólares norte-americanos. Logo, forçoso concluir que o consumidor requerente não tem amparo legal para sua inferência de que a indicação de R$ mil não se aplicaria ao luxuoso veículo importado que postula adquirir pelo valor “realmente” irrisório (sic – fl. 03, primeiro parágrafo) de R$ 171,97.


Ainda:

Após o requerimento administrativo que encaminhou à ora demandada (fls. 30/31), e que restou adequadamente indeferido (fls. 32), houve modificação na apresentação dos preços nas tabelas do jornal referido (fl. 42). Passaram a ser indicados por inteiro tanto os valores em US$ como em R$, o que não só evidencia mais uma vez a falta de fundamento da pretensão do requerente, como a diligência de quem elabora a listagem no sentido de evitar distorção como a apresentada na exordial em análise.”

Ainda, e para corroborar o agir malicioso do apelante, o Magistrado “a quo” arremata à fls. 66, com o efeito de desmascarar tão bizarra pretensão:

“Por derradeiro, incumbe destacar que neste Juizado ingressou segunda demanda, igualmente por sorteio, em que o mesmo autor pretende tornar-se proprietário de mais um veículo, naquele caso um Mercedes-Benz Modelo ML 500, ano 2004, zero km, importado da Alemanha, cor azul metálica ou qualquer outra cor. Caso em falta a preferida. Como se vê, na outra ação manteve-se o gosto pela cor, variando, porém, a marca do automóvel e, conseqüentemente, a revenda requerida.” grifei

Assim, em que pese as alegações doutrinárias do recorrente bem como as jurisprudências por ele colacionadas, tenho que aqui a solução da questão encontra guarida não somente nas normas do Código de Defesa do Consumidor, legislação avançada e que aqui me parece ter sido desvirtuada em seus princípios pelo demandante, mas sim na questão da eticidade e boa-fé que deve permear todas as relações jurídicas já que referido paradigma, além de estar positivado no CDC, também foi erigido no novo Código Civil e é um princípio maior que deve ser aplicado ao caso em exame.

O novo Código Civil, que passou a vigorar a partir de janeiro de 2003 além de dispor de elementos para o controle da lesão e abusividades ocorridas nos contratos trouxe princípios que vêm desenvolvidos sobre quatro diretrizes básicas. Entre elas temos a eticidade que visa o afastamento do individualismo que vigorava no Código Civil anterior que, por sua vez, vinha do Código Napoleônico. Além disso, também trouxe para o nosso sistema jurídico os valores éticos baseados no conceito “fato-valor-norma”, desenvolvido pelo jurista Miguel Reale. Ainda, dentro desses princípios, temos a boa-fé que foi positivada no novo Código. Entre outros artigos do Código, que versam sobre a boa-fé, temos o artigo 113, verbis:

“Art. 113. Os negócios jurídicos deve ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

Segundo a lição da ilustre [2] Cláudia Lima Marques, temos:

“Inicialmente é necessário afirmar que a boa-fé objetiva é um standard, um parâmetro objetivo, genérico, que não está a depender da má-fé subjetiva do fornecedor A ou B, mas de um patamar geral de atuação, do homem médio, do bom pai de família que agiria de maneira normal e razoável naquela situação analisada.” grifei

Essa é a situação dos autos. O apelante se qualifica como integrante da nobre classe dos Professores. Dessa forma, e até mesmo pelos seus termos expostos tanto na petição inicial como no recurso, verifica-se que ele sabia que o “negócio de ocasião” na verdade não era bem assim, que o automóvel importado que pretendia adquirir pela bagatela de R$ 171,97 (cento e setenta e um reais e noventa e sete centavos) na verdade custava US$ 59.300 (cinqüenta e nove mil e trezentos dólares). Com certeza absoluta anteviu a possibilidade de ganhar dinheiro fácil em lide verdadeiramente temerária.[3] Ainda, mais adiante, preleciona a ilustre Doutrinadora Cláudia Lima Marques sobre a questão da boa-fé:

Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causa lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.” grifei

Como visto, os princípios da transparência e boa-fé objetiva (que orientam as relações de consumo) valem para ambas as partes e não somente para a aqui no caso, apelada. Assim, sendo o referido princípio da boa-fé, preceito que deve permear as relações jurídicas, um parâmetro objetivo genérico, uma atuação refletida, como diz a ilustre Cláudia Lima Marques onde a parte deve agir com lealdade, sem abuso sobre a outra, cumpre, no caso em exame, buscar as reais intenções do apelante ao postular a compra de um automóvel luxuoso pelo valor como ele mesmo disse ser, irrisório. A meu ver, a resposta não pode ser outra que não a má-fé, a busca por um enriquecimento ilícito, ou seja, locupletar-se ilicitamente.

Incide, dessa forma, o artigo 14, incisos II e III, do CPC que aponta como deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo, proceder com lealdade e boa-fé e não formular pretensões, ciente de que são destituídas de fundamento. A mácula que atingiu a relação fática existente acabou por atingir também a relação jurídica constituída na medida que o demandante propôs demanda sem efetividade alguma, completamente desacompanhada da produção de efeitos práticos já que carente de interesse processual. Incide por sua vez, o artigo 17, inciso III, do mesmo CPC que aduz que se reputa litigante de má-fé, aquele que usar do processo para conseguir objetivo ilegal. Diante disso, declaro o recorrente litigante de má-fé e o condeno ao pagamento de multa prevista no artigo 18 do CPC no equivalente 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa.

E, para que tal multa realmente tenha efetividade, tenho que o valor da causa deve corresponder ao valor do bem que o apelante pretendida comprar. As regras que dispõem sobre o valor da causa (artigos 258, 259 e 260 do Código de Processo Civil), se constituem em matéria de ordem pública, sendo viável, portanto, a sua correção ex ofício pelo juiz.

“Quando a discrepância entre o valor atribuído à causa e o seu real conteúdo econômico for manifesto, fraudando, à evidência, o Erário Público, e prejudicando o serventuário de justiça, nos cartórios não oficializados, o juiz, pode, sim, corrigir de ofício a estimativa abusiva. A não ser assim, estaria à discrição das partes – uma atribuindo o valor da causa, a outra deixando de impugná-lo – a fixação do montante das custas, manipulando à base de cálculo dessa taxa, que constitui receita indisponível do Estado”. (STJ - Resp. 158.015 – Rel. Min. ARI PARGENDLER).

Ainda, “As regras sobre o valor da causa são de ordem pública, podendo o magistrado, de ofício, fixá-lo quando for atribuído à causa valor manifestamente discrepante quanto ao seu real conteúdo econômico”. (STJ – 3ª Turma, Resp. 55.288 – GO, Rel. Min. CASTRO FILHO).

Nesse mesmo sentido é a jurisprudência deste Tribunal:

APELAÇÃO. REVISIONAL DE ALIMENTOS. VALOR DA CAUSA INCORRETO NAO ENSEJA A EXTINÇÃO DA AÇÃO. PRINCÍPIO DA ECONOMIA PROCESSUAL AUTORIZA QUE O JUIZ, DE OFÍCIO, CORRIJA O VALOR DADO A CAUSA. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70004312724, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: JUCELANA LURDES PEREIRA DOS SANTOS, JULGADO EM 22/08/2002).

VALOR DA CAUSA. DETERMINACÃO DE ALTERAÇÃO INDEPENDENTE DE IMPUGNAÇÃO PELO RÉU. VIABILIDADE DE SUA CORREÇÃO DE OFÍCIO PELO JUIZ. SENDO AS REGRAS QUE DISPÕEM SOBRE O VALOR DA CAUSA DE ORDEM PÚBLICA, PODENDO INCLUSIVE GERAR CONSEQÜÊNCIAS NO TOCANTE A FIXACAO DA COMPETÊNCIA, VISTO SE TRATAR DE COMARCA EM QUE HA PRETOR, PODERIA O JULGADOR SINGULAR TER DETERMINADO, DE OFÍCIOO, O VALOR QUE ENTENDESSE CORRETO PARA A CAUSA, AINDA QUE NAO TENHA SIDO IMPUGNADO PELO RÉU, VISANDO A EVITAR A INÚTIL PROTELACAO DO CASO, UMA VEZ QUE NOVA DEMANDA SERIA PROPOSTA, PLEITEANDO A MESMA COISA, POREM COM O VALOR DA CAUSA ADEQUADO. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 599250578, SEXTA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: JOÃO PEDRO PIRES FREIRE, JULGADO EM 28/06/2000).

VALOR DA CAUSA. ACAO DE ALIMENTOS. CORREÇÃO DE OFÍCIO. PELO JULGADOR. POSSIBILIDADE. CRITÉRIO LEGAL. AS REGRAS QUE DELIMITAM O VALOR DA CAUSA SÃO DE ORDEM PÚBLICA, JUSTIFICANDO-SE A ALTERAÇÃO DE OFÍCIO PELO JULGADOR QUANDO O VALOR ATRIBUÍDO DESTOA DO RAZOÁVEL E, SOBRETUDO, DESATENDE AO CRITERIO LEGAL ESPECÍFICO. (AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70000279109, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES, JULGADO EM 24/11/1999).

Assim, vai o valor da causa corrigido para R$ 171,970.00 (cento e setenta e um mil e novecentos e setenta reais) que era o real valor do automóvel que o apelante pretendia adquirir.

Assim, diante de todos esses elementos coligidos aos autos verifica-se que muito embora, em situações outras, que não a presente, onde não há um desvirtuamento dos princípios norteadores do CDC, se reconheça a aplicação das normas atinentes à Legislação Consumerista, o exame da prova não levou a conclusão de que a propaganda ou conduta da empresa tenha sido enganosa ou abusiva. Por essas razões, correta a r. sentença do Magistrado “a quo” de fls. 64 a 67 que indeferiu a inicial com base nos artigos 267, inciso I e 295, II e II, ambos do CPC diante da ausência de interesse processual do demandante.

Isso posto, nego provimento ao apelo e condeno o autor nas penas de litigante de má-fé e o condeno ao pagamento de multa prevista no artigo 18 do CPC no equivalente 1% (um por cento) sobre o valor atualizado da causa.

DRA. ANA BEATRIZ ISER (REVISORA) - De acordo.

DES. PAULO AUGUSTO MONTE LOPES (PRESIDENTE) - De acordo.

DES. PAULO AUGUSTO MONTE LOPES - Presidente - Apelação Cível nº 70011573078, Comarca de Porto Alegre: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME."

Julgador(a) de 1º Grau: UBIRAJARA MACH DE OLIVEIRA


3. BREVE RESUMO DA JURISPRUDÊNCIA


O caso em tela versa sobre a pretensão de um professor em adquirir um automóvel importado por um preço mil vezes menor do que o real, alegando, como motivo para tal, propaganda enganosa por parte do fornecedor, baseando-se no fato de ter a empresa ré publicado anúncio onde constava o preço do veículo em dólares, usando, no numeral, apenas as casas do milhar. Em números reais, tentava o autor obrigar a ré a à venda forçada do veículo por 59,30 dólares, sendo seu preço, em verdade, 59.300 dólares.

O tribunal ad quem entendeu pela litigância de má fé do autor, aplicando-lhe multa de 1% sobre o valor da causa.. Além disso, atualizou o valor da causa para o valor real da ação, ou seja, o preço efetivo do veículo que o autor pretendia obter de forma escandalosa, fazendo incidir a multa sobre esse montante.

A corte ratificou a decisão do juízo de primeiro grau, que indeferiu a petição inicial sem julgamento de mérito, declarando-a inepta por falta de interesse de agir e por ilegitimidade da parte, sabidamente, duas das condições da ação, tema que passaremos, a seguir, a tratar.


4. CONDIÇÕES DA AÇÃO


4.1. CONCEITO E QUESTÕES RELEVANTES


O direito de ação, muito embora autônomo e abstrato, vincula-se a uma pretensão, sobre a qual se busca uma tutela jurisdicional. Por esse motivo, o direito de ação está subordinado a condições, que, de certa forma, se relacionam com a apreciação do mérito da causa.

A essas condições, chamam-se condições da ação: são, em resumo, os elementos e requisitos necessários para que o julgador decida sobre o mérito da pretensão, aplicando, com isso, o direito objetivo a uma situação litigiosa, compondo, desse modo, a lide, e buscando a pacificação social.

Essa parece ser a definição mais aceita pela doutrina, no sentido de que as condições da ação funcionam como uma pré-análise feita no sentido de verificar se a ação merece ter conhecido seu mérito. É o que pensa RODRIGO DA CUNHA LIMA FREIRE, que expõe: “Os pressupostos processuais e as condições da ação formam o juízo de admissibilidade no processo, para que passe, posteriormente, ao juízo de mérito, quando o juiz conhecerá e julgará a lide”[4] .

Nesse mesmo sentido, conceitua MOACYR AMARAL DOS SANTOS: “Condições da ação são as necessárias à decisão quanto ao mérito da questão sujeita a juízo”[5] .

E suma, as condições da ação funcionam como um filtro, que levará o juiz a decidir se a demanda proposta merece prosseguir até a análise do mérito. Trata-se, portanto, de uma regra que visa à economia processual, uma vez que, sabendo-se desde logo que a ação será malograda, não faz sentido conduzi-la por todas as fases processuais, movimentando inutilmente a máquina judiciária.

Todavia, apesar de ser o processo extinto sem julgamento de mérito, é preciso que fique claro que, ainda assim, existe, por parte do estado, tutela jurisdicional, uma vez que o juiz recebe a demanda e faz sobre ela uma apreciação. Não se pode, portanto, confundir indeferimento ao pedido de ação com prestação de tutela jurisdicional, como bem esclarecem ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO: “Mas ainda que a resposta do juiz se exaura na pronúncia de carência de ação (porque não se configuram as condições da ação), terá havido exercício de função jurisdicional” [6] .

Sobre o conceito de inépcia da petição inicial, encontramos a definição de PINTO FERREIRA: “A petição inicial inepta é a que tem um defeito insanável, insubstituível. Desde que sanável o defeito, cabe ao juiz solicitar a sua emenda pelo autor. É esse o conceito de petição inepta: uma petição com defeito insanável”[7] .

A doutrina é pacífica quanto à certeza de haver provimento jurisdicional quando é a ação extinta sem julgamento de mérito, uma vez que, dizer o contrário, seria o mesmo que admitir que o juiz atuou como mero órgão administrativo ao fazer a pré-análise da lide, aproximando-se de um ato do poder executivo, coisa incompatível com um sistema tripartite de poderes como o nosso. O que ocorre, em verdade é que o autor, não obstante ter exercido seu direito de invocar a tutela jurisdicional, ficou carente do direito de ação, por não preencher as condições básicas para tal.

Porém, nem todos se contentam com o uso do termo “carência de ação”, julgando-o inadequado, como pensa ARAKEN DE ASSIS:

“Classificar o autor ‘carente de ação’ é absurdo: ele obriga a autoridade judiciária, malgrado a disposição reticente desta, a apreciar seu pedido, leva-o até final instância, faz citar o réu, porque é ‘carente’ (que não tem; carente = aquilo que falta, privação”[8] .

Como bem observado pelo professor ARAKEN, a inépcia da petição inicial não obsta que o demandante recorra da decisão do juízo singular, atendendo ao princípio do duplo grau de jurisdição, além de, indiretamente, garantir, ainda, o contraditório.

Assim corrobora JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA: “Do contrário, essas questões seriam definitivamente resolvidas sem a indispensável preservação da garantia do contraditório”[9] .

Eis, aí, mais um forte indício que demonstra, claramente, a atividade jurisdicional, mesmo quando a ação carece de análise de mérito.

Fato que decorre justamente da carência da análise do mérito da causa, é que não há, portanto, coisa julgada material, visto que não houve apreciação da matéria, o que não impede que o autor proponha nova ação sobre o mesmo tema. Não havendo decisão judicial sobre o tema proposto, não há o que se falar em coisa julgada material. Dessa forma ensinam EDUARDO SILVA DA SILVA, HENRIQUE CHOER MORAES e MAURÍCIO LINDENMEYER BARBIERI:

“Dessarte, a coisa julgada não pode se aperfeiçoar no bojo de uma relação processual absolutamente nula, por ausência de pressuposto processual ou carência de ação. Seria supremo absurdo assentar a res indicata sobre o nada jurídico que é o processo absolutamente nulo”[10] .

Vista a construção doutrinária quanto ao tema em exame, passemos a examinar como se encontra ele sistematizado na legislação pátria.


4.2. AS CONDIÇÕES DA AÇÃO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO


Prevê nosso Código de Processo Civil, no art. 267, inc. VI, que o processo será extinto sem análise de mérito quando “não concorrerem qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes e o interesse processual”. Nota-se, claramente, que o legislador delimitou as três hipóteses que configuram as condições da ação.

A leitura desse artigo, leva-nos, ainda, a compreender que a falta das condições da ação pode ser pronunciada pelo juiz a qualquer tempo no processo. Nesse sentido manifesta-se JOSÉ EDUARDO CARREIRA ALVIM: “A ausência de uma dessas condições importa carência de ação e pode ser declarada de ofício pelo juiz em qualquer fase do processo”[11] .

Porém o ideal, atendendo ao princípio da economia processual, é que o juiz pronuncie o mais cedo possível a extinção do processo. É o que se deduz da exegese do inc. I do art. 267, que pronuncia que o juiz poderá declarar inepta a petição inicial, fazendo com que o processo, desde logo, torne-se ineficaz. E, dentre as causas que autorizam o juiz a indeferir a petição inicial, encontramos, no artigo 295, as condições da ação, nos incisos II e III, e III do parágrafo único, que tratam, respectivamente, da ilegitimidade da parte, da carência de interesse processual e da impossibilidade jurídica do pedido. Nesse ponto, muito bem referem ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO:

“É dever do juiz a verificação da presença das condições da ação o mais cedo possível no procedimento, e de ofício, para evitar que o processo caminhe inutilmente, com dispêndio de tempo e recursos, quando já se pode antever a inadmissibilidade do julgamento de mérito.”[12] .

Ainda versando sobre a questão, temos o artigo 3º: “para propor ou contestar ação, é necessário ter interesse e legitimidade”. Vislumbra-se, aqui, a expressa referência a duas das três condições da ação.

Não cabe apenas ao juiz, de ofício, decretar a carência de ação. Esta poderá, inclusive pela falta de suas condições, ser argüida pelo réu em contestação, respaldado ele pelo artigo 301, incisos III e X.

Tratando sobre a legitimidade da parte, encontramos a regra geral do artigo 6º, que dispõe que “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado em lei”.

Caso seja indeferida a petição inicial e havendo apelo por parte do autor, o juiz poderá, no prazo de 48 horas, rever sua decisão. É o que versa o artigo 296. Podemos observar a preocupação do legislador em fazer com que a decretação da inépcia da inicial, visto negar ao autor o direito a uma sentença, seja feita pelo juiz com a mais absoluta convicção. É com esse fito que afirma MOACIR AMARAL SANTOS: “O reconhecimento da inocorrência de quaisquer das condições da ação somente deverá dar-se quando isso seja manifesto. Na dúvida, deve prosseguir a demanda”[13] .

Examinados os conceitos doutrinários e a previsão legal das condições da ação, passemos a analisar cada um dos três elementos que a compõem, sabidamente, a possibilidade jurídica do pedido, o interesse em agir e legitimidade da parte.


4.3. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO


Nem todos os fatos do mundo real são relevantes ao direito. Apenas uma parcela dos fenômenos reais são trazidos para dentro do mundo jurídico. Vejamos essa breve lição de PAULO NADER: “Não são todos os acontecimentos do mundo fático que se projetam no mundo dos direitos, mas apenas os que se revelam importantes para o equilíbrio social[14] .

Dessa singela, porém elucidativa assertiva, podemos constatar que existe uma clara limitação no universo jurídico, limitação esta que o juiz, assim como todos os operadores do direito, precisa respeitar.

Logo, não é sobre todo e qualquer fato que poderá o juiz pronunciar-se sobre seu mérito. Para que o pedido seja considerado juridicamente possível, dois requisitos tornam-se indispensáveis: que haja previsão no ordenamento jurídico respaldando o mesmo, ou que não exista dispositivo legal que o proíba.

Quanto ao primeiro requisito, assim pronuncia-se FÁBIO GOMES: “A possibilidade jurídica do pedido consiste na previsibilidade, pelo direito objetivo, da pretensão exarada pelo autor. Em outras palavras, o pedido formulado deve obter correspondência, in abstrato, na lei”[15] .

Corroborando com GOMES, ensina JOSÉ MILTOM DA SILVA: “A assistência jurisdicional, dada pelo Estado aos indivíduos para a solução dos seus conflitos de interesses, exige que a pretensão alegada seja tutelada pelo direito objetivo”[16] .

Todavia, levando-se em conta que não existe ordenamento jurídico perfeitamente completo, onde o legislador pudesse, exaustivamente, prever todos os fatos sociais imagináveis, parece-nos mais razoável que o segundo requisito, isto é, a não vedação legal ao pedido formulado pelo autor, seja o tópico mais importante a ser apreciado pelo juiz ao analisar a possibilidade jurídica do pedido. O próprio CPC prevê a possibilidade da prestação jurisdicional em casos em que a lei silencia, como muito bem posto por JOSÉ EDUARDO CARREIRA ALVIM: “Realmente, ante ao disposto no art. 126 do CPC, que reconhece a existência de lacuna na lei, não se podendo compreender a possibilidade jurídica na sua feição clássica”[17] .

Na mesma linha de raciocínio, ensina EGAS DIRCEU MUNIZ DE ARAGÃO: “Sendo a ação o direito público subjetivo de obter a prestação jurisprudencial, o essencial é que o ordenamento jurídico não contenha uma proibição ao seu exercício; aí, sim, faltará a possibilidade jurídica”[18] .

Questão de importante relevância, que causa divergência na doutrina, é o paradoxo criado pela possibilidade jurídica do pedido: se direito de ação, abstrato que é, não se confunde com direito material, como, para que seja apta a ação, é necessário que o segundo seja pressuposto do primeiro? Alguns doutrinadores são categóricos ao afirmar a dependência desses direitos para o exercício de ação, como GALENO VELHINHO LACERDA: “Os dois direitos não são autônomos, não são independentes, eles se vinculam através das condições da ação. O direito subjetivo processual nasce do direito objetivo material”[19] .

Todavia, tal assertiva parece ser não satisfazer à explicação de todos os tipos de ação. Como, por exemplo, se explicaria a ação improcedente, onde, apesar de haver sentença de mérito, restou provado que não havia o direito material alegado pelo autor? A resposta é que é preciso uma relativização dessa condição, voltando-se às duas premissas básicas já referidas no início deste tópico: por um lado, deve haver a previsão do pedido do autor no ordenamento jurídico, o que ocorre na maioria dos casos. Por outro lado, pode haver situações em que a simples não proibição do pedido formulado baste para que o mesmo seja admitido. É a análise, pelo juiz, do caso concreto, que vai trazer a solução. Distinguindo esses dois conceitos, muito bem ensinam OVIDIO BATISTA DA SILVA e FÁBIO GOMES: “[...] a ação não se confunde com o direito, mas com o exercício do mesmo. Não haverá dificuldade de se vislumbrar, portanto, que pode haver direito subjetivo desprovido de pretensão; e que esta não pode ser confundida com ação”[20].


4.4. INTERESSE EM AGIR


Como já tratamos no tópico anterior, nem todos os pedidos são juridicamente possíveis. Da mesma forma, nem todos os pedidos feitos ao judiciário são necessários. Em outras palavras, não são todas as situações do mundo fático que necessitam da tutela jurisdicional. Existindo outro meio para a solução do problema, este deve ser utilizado. É a essa necessidade imprescindível do amparo jurisdicional que se chama interesse em agir. Vejamos alguns conceitos trazidos por doutrinadores.

MOACYR AMARAL SANTOS: “Em suma, o interesse em agir consistirá na necessidade de se recorrer ao juízo para a tutela de um interesse jurídico” [21] .

FÁBIO GOMES: “O interesse em agir implica a necessidade e ou a utilidade da tutela jurisdicional para que o autor obtenha a satisfação do direito alegado”[22] .

CÃNDIDO RANGEL DINAMARCO: “O acesso à justiça é, mais do que ingresso no processo e aos meios que ele oferece, modo de buscar, eficientemente, na medida da razão de cada um, situações e bens da vida que por outro caminho não se poderiam obter. Em outras palavras, não terá acesso à ‘ordem jurídica justa’ nos casos em que, por fás ou nefas, sem o processo não se possa sequer chegar ao processo”[23] .

JOSÉ MILTOM DA SILVA: “Assim, verifica-se que só tem interesse em agir aquele que sofre o insulto de violação do seu direito e que, por isso mesmo, deverá solicitar do órgão judiciário o remédio jurídico adequado para a restauração do seu direito”[24] .

Como se vê, a maioria da doutrina entende que o autor precisa ser carente da tutela jurisdicional para que sua ação mereça análise de mérito. Contudo, posição contrária tem o ARAKÉN DE ASSIS, que pensa que essa análise deveria ser justamente discutida no mérito da questão:

“Logo, dizer que ao autor faltava o interesse de acionar o estado é o mesmo que entendê-lo privado do direito material. Não é suficiente, portanto, à inadmissibilidade da ação. O interesse exigido na lei (art. 3º do CPC) surge escorreito na afirmação do autor de que necessita tutela; se jurídica ou contra o direito, é no processo que se vai saber” [25] .

Nesse mesmo sentido, encontramos RODRIGO DA CUNHA LIMA FREIRE: “O interesse de agir, tutelado pela lei processual, é absolutamente distinto do interesse substancial ou material, protegido pela lei substantiva”[26] .

Distinção importante a ser feita, é a não confusão entre a pretensão ao direito de ação e o meio utilizado para o exercício dessa pretensão, qual seja, o tipo de ação proposta, como bem lembra EGAS DIRCEU MONIZ DE ARAGÃO: “Quando se fala em previsão em abstrato do pronunciamento pretendido, ou no veto que lhe seja oposto, não é considerado o tipo processual da sentença a que o autor visa, mas a solução por ele pleiteada para a solução da lide”[27] .

Também não tem interesse de agir aquele que propõe causa atingida pela coisa julgada (ainda que apenas formal), como bem expõe SÉRGIO GILBERTO PORTO: “Realmente, quem já submeteu sua pretensão cautelar à apreciação do Poder Judicário, não possui mais necessidade de que esta, nas mesmas condições, seja reapreciada. Há evidente falta de interesse, e isso acarreta a rejeição da pretensão repetitiva”[28] .

Concluindo, podemos dizer que, sempre que houver outros meios disponíveis para a solução de um litígio, esses devem ser utilizados. O espírito da lei versa no sentido de dar a tutela jurisdicional apenas àqueles que realmente dela necessitem.


4.5. LEGITIMIDADE PARA A CAUSA


A legitimidade ad causam parte do princípio de que a parte precisa ser a legítima titular do direito material pretendido. Ninguém pode, salvo exceções previstas na lei, pleitear direito alheio em nome próprio.

Definir se é legítima a parte trata-se de análise de nem sempre fácil execução, visto que o juiz deverá examinar elementos do direito material para encontrar a correspondência entre aquele que pede e aquilo que pede. Nesse ponto, cite-se a consideração de MOACYR AMARAL DOS SANTOS:

“É que a legitimatio ad causam exige o exame da relação de direito substancial em que se funda a demanda. Dizer se o autor ou o réu têm qualidade para agir, isto é, se existe identidade entre o autor e a norma jurídica que o autoriza a agir (legitimação ativa) ou entre o réu e a norma jurídica que o autoriza a contradizer (legitimação passiva), implica resolver um dos méritos da ação. Não é que se confunda a qualidade para agir com o próprio mérito da ação. A legitimatio ad causam é apenas uma condição da sentença, é uma preliminar do mérito”[29] .

Ainda sobre a dificuldade de ser constatada desde logo pelo juiz a ilegitimidade para agir, temos o caso em que o autor pode faltar com a verdade, sendo o fato descoberto apenas na análise de mérito da questão.

Ou, pode, ainda, pensar o autor ser o legítimo titular do direito, quando, na verdade, não o é, fato que só vai saltar aos olhos quando da sentença. Leiamos esse trecho de ADA PELLEGRINI GRINOVER, ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO:

“Assim, a princípio, é titular de ação apenas a própria pessoa que se diz titular do direito subjetivo material cuja tutela pede (legitimidade ativa), podendo ser demandado apenas aquele que seja titular da obrigação correspondente (legitimidade passiva)”.[30] (O grifo é nosso).

Tal posicionamento mostra-se, em parte, procedente, tendo em vista que poderemos ter casos concretos em que tenhamos análise de mérito sem que a parte seja legítima. Aliás, redigiram brilhantemente OVIDIO BATISTA DA SILVA e FÁBIO GOMES:

“E, como não foi encontrado um meio de só admitir-se o ingresso de partes legítimas em juízo com a formulação somente de pedidos juridicamente possíveis e sempre portadores de necessidade, ou interesse na tutela jurisdicional, não há como inadmitir-se a postulação por partes ilegítimas, de pedidos juridicamente impossíveis e desprovidos de interesse. Aliás, só o juiz poderá identificar tais vícios”.[31]

É nítido que a pretensão do legislador, ao criar o filtro das condições da ação, pelo qual deve passar toda a ação que ingressa no Judiciário, é reduzir ao máximo o número de ações que sejam levadas inutilmente até o julgamento do mérito. Porém, não serão em todos os casos em que isso será possível.

Vale lembrar, ainda, que a legitimação para a causa vale tanto para o autor quanto para o réu, apesar de, neste último caso, haver a hipótese de ser sanado o processo através da emenda da inicial. Transcrevemos essa passagem de JOSÉ MILTOM DA SILVA: “A legitimação ou qualidade para agir deverá ser ativa e passiva, ou seja, o autor terá de demonstrar não apenas a sua qualidade para agir, mas também que o réu é a pessoa certa para ser demandada”[32] .

A legitimidade para a causa é, ao nosso ver, dentre as três condições da ação, aquela que mais se confunde diretamente com o direito material, uma vez que não será prestada a tutela jurisdicional àquele que não for o legítimo portador do direito invocado, à exceção de poucas situações em que a lei autorize a contrario sensu.


5. CONSIDERAÇÕES SOBRE A JURISPRUDÊNCIA


À luz dos elementos doutrinários e legais anteriormente expostos, podemos traçar uma breve consideração acerca da lide exposta em tela nesse trabalho.

Retomando o caso, o juiz a quo declarou inepta a petição inicial pela falta de condições da ação, especificamente, falta de interesse para agir e ilegitimidade da parte, sentença ratificada pelo tribunal.

No tocante a falta de interesse para agir, fica claro que a decisão monocrática e colegiada foi acertada. O autor, ao pretender usar o Judiciário para obter um enriquecimento sem causa, não tinha o interesse para agir exigido pela lei. Ademais, ele já havia tentado a compra pela via normal, qual seja, a via comercial, tendo sido esclarecido a ele, pela revenda de automóveis, que havia um equívoco na interpretação do anúncio, equívoco esse facilmente constatável pelo homem médio. Ou seja, o pretenso autor não tinha a intenção de utilizar a tutela jurisdicional para ver resolvido um direito seu, mas sim para tentar obter um absurdo enriquecimento ilícito. Decidir de outra forma seria conduzir inutilmente o processo, forçando o juiz a prolatar uma sentença, presumivelmente, improcedente. A lei foi inteligentemente aplicada.

Da mesma forma, corretíssima a invocação da ilegitimidade da parte. Uma vez sendo carecedor o pretenso autor da legitimidade para agir, não pode ser ele parte no processo. A segunda premissa é conseqüência natural da primeira. Não era o autor detentor do direito material invocado; logo, não era parte legítima para propor a ação. Apesar de que bastaria apenas a falta de uma das condições da ação para que fosse declarada inepta a petição inicial e decretado extinto o processo sem julgamento de mérito.

Ainda sobre a decisão, não obstante não ser o foco deste trabalho, apenas para não passar em branco, mais uma vez acertou o órgão colegiado ao aplicar a multa por litigância de má-fé. Ora, sendo flagrante a tentativa do postulante de utilizar-se do aparato judiciário para obter mera vantagem própria, nada mais justo que receber o mesmo uma punição pelo feito.


6. CONCLUSÃO


Três são as condições da ação, instituto que serve como análise preliminar ao mérito da ação: possibilidade jurídica do pedido, interesse em agir e legitimidade para a causa.

Antes de dar prosseguimento ao processo, deve o juiz constatar, e a parte ré alegar, se a pretensa ação preenche as três condições, visando à economia processual.

Apesar de o tema suscitar posições doutrinárias nem sempre convergentes, deve o juiz ater-se, primordialmente, às regras consagradas na legislação, fato que se constatou na análise da jurisprudência trazida em óbice.


7. BIBLIOGRAFIA


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SILVA, Ovídio Batista da; GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil. 2. ed. Revista dos Tribunais : São Paulo, 2000.


Notas do texto:


[1] O autor pretende adquirir pelo valor de R$ 171,97, um automóvel Alfa Romeo, modelo 166, 3.0, V6, ano 2004, zero km, importado da Itália.

[2] Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, página 106.

[3] Cláudia Lima Marques, obra citada, página 107.

[4] FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da Ação – Enfoque sobre o Interesse de Agir. 2. ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2001. p. 67.

[5] SANTOS, Moacyr Amaral. As Condições da Ação no Despacho Saneador. São Paulo : Livraria dos Advogados, 1946. p. 15.

[6] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002., p. 258.

[7] PINTO FERREIRA. Curso de Direito Processual Civil. São Paulo : Saraiva, 1998. p. 47.

[8] ASSIS, Araken de. Doutrina e Prática do Processo Civil Contemporâneo. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2001. p. 37.

[9] MOREIRA, José Carlos Barbosa Moreira. Novo Processo Civil Brasileiro. 22. ed. Rio de Janeiro : Forense, 2004. p. 25.

[10] BARBIERI, Maurício Lindenmeyer; Moraes, Henrique Choer; Silva, Eduardo Silva da. Teoria geral do Processo. Sérgio Antônio Fabris Editora : Porto Alegre, 2002. p. 156.

[11] ALVIM, José Eduardo Carreira. Teoria Geral do Processo. Forense : Rio de janeiro, 2002. p. 137.

[12] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini, 2002., p. 261.

[13] SANTOS, Moacyr Amaral, 1946. p. 108.

[14] NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 13. ed. Forense : Rio de Janeiro, 1996. p. 381.

[15] GOMES, Fábio. Carência de Ação. Revista dos Tribunais : São Paulo, 1999. p. 41.

[16] SILVA, José Miltom da Silva. Teoria Geral do Processo. 2. ed. Forense : Rio de Janeiro, 2003. p. 103.

[17] ALVIM, José Eduardo Carreira, 2002. p. 140.

[18] ARAGÃO, Egas Moniz de Aragão. Comentários ao CPC. Vol.III. 9. ed. Forense : Rio de Janeiro, 2000. p. 396.

[19] LACERDA, Galeno Velhinho de. Curso de Aperfeiçoamento para Juízes de Direito – Condições da Ação e Pressupostos Processuais – 2ª Conferência. AJURIS : Porto Alegre, 1984. p. 7.

[20] SILVA, Ovídio Batista da; GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil. 2. ed. Revista dos Tribunais : São Paulo, 2000. p.130.

[21] SANTOS, Moacyr Amaral, 1946. p. 74.

[22] GOMES, Fábio, 1999. p. 41.

[23] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 10. ed. Malheiros : São Paulo, 1986. p. 347.

[24] SILVA, José Miltom da Silva, 2003. p. 104.

[25] ASSIS, Araken de, 2001. p. 43.

[26] FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima, 201. p. 121.

[27] ARAGÃO, Egas Moniz de Aragão, 2000. p. 380.

[28] PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa Julgada Civil. 2. ed. Aide Editora : Rio de Janeiro, 1998. p.96.

[29] SANTOS, Moacyr Amaral, 1946. p. 49.

[30] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini, 2002., p. 260.

[31] SILVA, Ovídio Batista da; GOMES, Fábio, 2000. p.131.

[32] SILVA, José Miltom da Silva, 2003. p. 105.

Fonte: Escritório Online


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