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Escritório Online :: Artigos » Direito do Consumidor


O abuso tolerado no uso dos vales-refeição

09/05/2002
 
Glauber Moreno Talavera



Tamanha é a indignação dos muitos que, como eu, no cotidiano, sentem-se espoliados por práticas que não mais deveriam integrar o contexto da sociedade brasileira, aquela que tem um Código de Defesa do Consumidor, que tenciona restabelecer a dignidade da pessoa humana sedimentada num conceito protetivo de cidadania e, que não mais se compadece com uma justiça de feição meramente retributiva.

A prática espúria da cessão de contra-vales quando do uso de tiquetes para refeição é algo, no mínimo, imoral, pois não é necessário palmilharmos o pensamento forjado na juridicidade para vislumbrarmos a abusividade desta conduta, lamentavelmente disseminada entre nós como tudo o que consegue parafrasear, na prática, a tão afamada Lei de Gerson. Uma conduta típica de uma sociedade que dá um passo para o advento de valores progressistas com a adoção da legislação consumerista, mas que tem o outro pé ainda fincado no lamaçal da arbitrariedade, do sentimento coronelista amalgamado ao apego ao retrocesso como forma de perpetuar os privilégios, ao funesto exercício arbitrário das próprias razões.

Os vales-refeição têm natureza salarial. Ao recebê-los, o empregado concorda, tácita ou expressamente, que seja descontado de seu salário determinada parcela do valor destinado ao custeio dos vales-refeição. Ressalte-se, por oportuno, que os vales constituem parte da renda que o trabalhador percebe pelo trabalho prestado ao empregador.

A moeda é o instrumento hábil para o exercício de direitos subjetivos de cunho patrimonial. Alguns de seus principais atributos são a liqüidez, o poder de compra e a fragmentariedade.

Analogicamente, pois, os vales-refeição podem ser considerados como uma espécie de moeda de circulação restrita e voltada exclusivamente para o pagamento de refeições nos restaurantes que firmam convênios com as empresas.

No vale-refeição consta apenas a inscrição "válido somente para o pagamento de refeições". Não há qualquer determinação expressa para que o valor consignado naquele pedaço de papel deva ser gasto na sua integralidade no consumo de uma ou mais refeições em um mesmo estabelecimento comercial.

Daí, inarredável inferirmos que sua única especificidade é servir exclusivamente para o pagamento de refeições. De resto, pois, o vale preserva os mesmos atributos da moeda. Ou, pelo menos deveria preservar, não estivesse consagrada entre nós a prática consubstanciada no fornecimento de contra-vale, disseminada pelos fornecedores de serviço de alimentação, que faz do vale-refeição um instrumento de troca por refeições de liqüidez limitada, poder de compra restrito e natureza indivisível.

Imagine, a título de ilustração, a situação do sujeito que recebe no início de cada mês um talão de vales-refeição no valor de R$7,00 cada. Faminto, após ter cumprido a jornada de trabalho matutina, encaminha-se para um restaurante e faz uma refeição no valor de R$3,50. O feijão estava frio e duro, o arroz empapado e a carne tão passada como uma sola de sapato. Não bastasse tudo isso, o tratamento dispensado pelo garçom deixou a desejar. Descontente com a qualidade do serviço prestado, o nosso pobre trabalhador decide que nunca mais vai por os pés naquela espelunca. No ato do pagamento, lança mão de um vale para pagar a refeição tomada e recebe um famigerado contra-vale de R$3,50 de troco. Restam-lhe três alternativas: retornar no dia seguinte ao mesmo restaurante e tomar nova refeição no valor expresso no contra-vale; gastar o valor correspondente nas guloseimas oferecidas pelo caixa; ou renunciar ao valor expresso no contra-vale e arcar com a perda de R$ 3,50.

Mal comparando, tal situação é equivalente à do cidadão que vai a uma banca e compra, com uma cédula de R$ 10,00, um jornal cujo preço de capa é R$ 1,00. O jornaleiro, ao invés de dar-lhe R$ 9,00 de troco, obriga-o a gastá-los com revistas, gibis e figurinhas ou, se preferir, a voltar nos dias seguintes para gradativamente consumí-los. Convenhamos, uma situação absurda.

Diante de engodo de tal magnitude, é lastimosa a situação a que são levados alguns consumidores incautos que, ensejando não estarem obrigados aos retornos indesejados a restaurantes em virtude da política dos contra-vales, promovem a venda de seus tiquetes com descontos em torno de 12 a 15% e, como que trocando seis por meia dúzia, ganham liqüidez e maior poder de escolha, mas perdem na qualidade das refeições devido ao desconto imputado quando da venda dos tiquetes.

O comerciante alega, com razão aliás, que não pode dar troco em dinheiro quando o pagamento é feito em tiquete, em virtude do lapso temporal dilargado que as empresas de tiquetes levam para promover o resgate destes e, conseqüentemente, o pagamento em dinheiro ao comerciante. É fato que os contra-vales trazem consigo, também, para o comerciante, a perspectiva de uma refeição que está sendo feita episodicamente neste local e, que não mais haverá retorno daquele cliente ou, mesmo o fato da perda constante de contra-vales, que ouço tanto as pessoas reclamarem, o que, invariavelmente, favorece os comerciantes, mas este é um fato periférico, alheio a esta abordagem.

À luz da legislação consumerista tal prática pode ser enquadrada como abusiva. Foi inclusive contemplada pela Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990, conhecida entre nós como Código de Defesa do Consumidor. O art. 39, I, do referido diploma legal veda expressamente a chamada "venda casada", consistente no condicionamento do fornecimento de produto ou serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço. Ora, ao tomar uma refeição e pagá-la por meio de vale-refeição, o consumidor é obrigado, ao receber o troco em contra-vale consumível exclusivamente no estabelecimento emissor, a sujeitar-se a esse tipo de condicionamento imposto, abusivamente e arbitrariamente, reitere-se, pelo fornecedor.

O cerne da questão é a manutenção da liberdade de escolha do consumidor que, inserido neste esdrúxulo contexto da política dos contra-vales, é espoliado em suas convicções, pois resta encalacrado, mesmo a contragosto, pela necessidade de consumir o total do valor do tiquete no mesmo estabelecimento.

Não somos maniqueístas e, portanto, não temos a pretensão, como muitos, de promover a satanização dos fabricantes e fornecedores, nem tampouco angariamos expectativas fantasiosas de que estes possam parafrasear Oliver Cromwell em sua observação ao pintor Peter Lely, quando aquele assevera ao eminente troca-tintas: "Pinta-me como sou. Se omitires as cicatrizes e as rugas, não te pagarei um xelim!". Sinceramente, não.

Em face deste disparate, que cerceia a liberdade do consumidor e macula as relações consumeristas diante do potencial vastamente espoliativo da parte concebida como vulnerável, asseveramos que as empresas fornecedoras de tíquetes devem, ao conceber que determinado restaurante seja conveniado, fornecer máquinas-padrão da empresa para que haja emissão de contra-vale a ser aceito, pelo menos, por toda a rede conveniada daquela empresa, de maneira a estabelecer que a política do contra-vale não seja uma política nefasta de aprisionamento da escolha do consumidor e, que o aprisionamento seja efetivado pelo estômago do consumidor que reconheça o toque de Midas por detrás da colher de pau deste ou daquele estabelecimento.

Muita gente talvez não tenha se dado conta da flagrante arbitrariedade e abusividade implícitas no fornecimento de contra-vales. O fato é que, injustificável do ponto de vista legal, o cerceamento ao direito do cidadão de dispor integralmente do valor de face dos vales da maneira como melhor lhe aprouver, independentemente da imposição de condicionantes de qualquer natureza, não pode perdurar. Alguma providência deve ser tomada para que o cidadão, já tão espoliado na condição de trabalhador mal remunerado e contribuinte que suporta uma carga tributária escorchante, sem receber nada do Poder Público em contrapartida, seja ainda, na condição de consumidor, vítima habitual das práticas abusivas levadas a efeito pelos fornecedores, ao arrepio da legislação consumerista pátria.

Devemos sedimentar e disseminar entre nós o Juízo Final destas práticas abusivas, extirpando privilégios e desatando o nó górgio que ainda nos mantém amalgamados a estes procedimentos ignóbeis, custe o que custar, pois como dizia o Marquês de Maricá, em suas Máximas, "Os abusos, como os dentes, nunca se arrancam sem dores"...

Fonte: Escritório Online


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