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A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor - O momento em que se opera a inversão e outras questões

19/02/2003
 
André Gustavo Corrêa de Andrade




SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Os requisitos de hipossuficiência e verossimilhança; 2.1 Conceito de hipossuficiência; 2.2 Conceito de verossimilhança; 2.3 Alternatividade dos requisitos – 3. A inversão do ônus da prova em prol do consumidor réu – 4. Inversão do ônus financeiro – 5. Regra de procedimento ou regra de julgamento? O momento em que se opera a inversão e o princípio da ampla defesa; 5.1 Os graus de certeza na aplicação do texto legal; 5.2 A situação objetiva de incerteza na aplicação do texto legal; 5.3 O risco decorrente da valoração. A igualdade entre os litigantes; 5.4 A falta de clareza do texto legal; 5.5 Pas de nulité sans grief – 6. A inversão do ônus da prova no juizado especial – 7. A inversão do ônus da prova no juízo comum – 8. A inversão do ônus da prova em segundo grau de jurisdição – 9. Irrecorribilidade da manifestação do juízo acerca da distribuição do encargo probatório – 10. Antecipação da tutela fundada em inversão do ônus da prova – 11. Conclusões.


1. Introdução


Estabelece o art. 6º, VIII, do CDC que constitui direito básico do consumidor a facilitação da defesa dos seus direitos em juízo, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.

Questão que tem mobilizado a doutrina e a jurisprudência é a relativa ao momento em que deve o juiz se pronunciar pela inversão do ônus da prova. Vozes respeitáveis na doutrina têm defendido o entendimento de que a norma em comento constitui regra de procedimento, porque imporia ao juízo indicar previamente, no processo, seu entendimento em prol da inversão, para possibilitar ao fornecedor de produtos ou serviços a oportunidade de se desincumbir do ônus que então lhe está sendo entregue. A jurisprudência, todavia, nem sempre tem seguido esse alvitre. Não são poucos os julgados, principalmente no juizado especial cível, que tem operado a inversão do ônus da prova na própria sentença.

Essa e outras questões relacionadas com o art. 6º, VIII, do CDC serão objeto de exame no presente trabalho.


2. Os requisitos de hipossuficiência e verossimilhança


Antes de passar ao exame da questão referente ao momento em que se deve operar a inversão do ônus da prova, cabe examinar os requisitos indicados no texto legal: a hipossuficiência do consumidor e a verossimilhança de sua alegação.


2.1 Conceito de hipossuficiência


A palavra hipossuficiente é formada pelo prefixo hipo, do grego hipó, designativo de escassez ou inferioridade, e do vocábulo suficiente, que indica não apenas aquilo que satisfaz ou que basta, mas, também, aquilo ou aquele que tem capacidade para realizar (algo); hábil, apto, capaz.[1]

Segundo o Novo Dicionário Aurélio, hipossuficiente é a “pessoa economicamente fraca, que não é auto-suficiente.” O Dicionário Houaiss traz o mesmo sentido para o vocábulo: “diz-se de ou pessoa de parcos recursos econômicos, que não é auto-suficiente”.

Os léxicos, como se vê, vinculam a expressão hipossuficiente à situação de fraca ou escassa condição econômica. Mas, no contexto do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, hipossuficiente é, genericamente, o consumidor que se encontra, concretamente, em posição de manifesta inferioridade perante o fornecedor

A doutrina, depois de algumas vacilações, passou a tender para um conceito ampliativo de hipossuficiência, abrangente não apenas da situação de insuficiência ou fraqueza econômica, mas de uma situação de inferioridade ou desvantagem em geral do consumidor perante o fornecedor.

Hipossuficiente, de acordo com esse conceito mais amplo, seria o consumidor que, por razões de ordem econômica, social, cultural (dentre outras) tivesse grandes dificuldades de comprovar a veracidade de suas alegações. Daí se poder falar em uma hipossuficiência econômica, social, cultural, etc.[2]

Dentro de uma concepção amplíssima, a hipossuficiência poderia prescindir das características individuais do consumidor. O conceito seria, na verdade, relacional: hipossuficiente seria o consumidor (pobre ou rico, culto ou inculto) que, em relação a um dado fornecedor, estivesse em posição de desvantagem no que se refere à demonstração do alegado direito.

Por uma tal perspectiva, a hipossuficiência do consumidor pode decorrer do seu desconhecimento acerca de aspectos relacionados com a elaboração de produtos e a realização de serviços, ou, ainda, da extrema dificuldade de produzir prova relacionada com as fases da cadeia produtiva. O monopólio da informação por parte do fornecedor justifica a inversão da carga probatória[3] . A inferioridade do consumidor em relação ao fornecedor, assim, decorrerá, muitas vezes, “da desigualdade existente quanto à detenção dos conhecimentos técnicos inerentes à atividade deste.”[4] Pode-se aludir, portanto, a uma hipossuficiência técnica.[5]

O notável Kazuo Watanabe, modificando entendimento que antes esposava, reconhece não ser de todo aceitável vincular a hipossuficiência à carência econômica. A pedra de toque do conceito estaria no flagrante desequilíbrio da relação entre consumidor e fornecedor, em detrimento do primeiro. Traz, como hipótese de trabalho, conflito de interesses, envolvendo consumidor e montadora de veículos, acerca de vício de fabricação de veículo. Argumenta que a só demonstração, por exemplo, de que o veículo apresenta defeito no motor poderá não ser bastante para o convencimento de que é de fabricação o vício do produto. A despeito de ser o consumidor pessoa abastada economicamente e de bom nível intelectual e cultural, talvez lhe seja impossível produzir tal prova, porque somente o fornecedor tem pleno conhecimento do projeto, da técnica e do processo utilizado na fabricação do veículo. Em assim sendo, por dispor de melhores condições de demonstrar a inocorrência do vício de fabricação, ao fornecedor deve ser atribuído o ônus da prova.[6]

A hipossuficiência seria, portanto, condição aferível apenas dentro de uma relação de consumo concreta, na qual estivesse configurada situação de flagrante desequilíbrio, em detrimento do consumidor, de quem não seria razoável exigir, por extremamente dificultosa, a comprovação da veracidade do fato constitutivo de seu direito.


2.2 Conceito de verossimilhança


Formada pelos vocábulos vero (de verdadeiro, real, autêntico) e símil (de semelhante, similar), o termo verossímil traz a noção de algo que se assemelha à verdade, que tem a aparência de verdadeiro.

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira conceitua “verossímil” como: “1. Semelhante à verdade; que parece verdadeiro. 2. Que não repugna à verdade; provável.” Por sua vez, o aclamado dicionário Morais assim define “verossímil”: “Semelhante à verdade; que tem aparência de verdadeiro; mais ou menos certo (...) Que não repugna à verdade; provável; plausível”.

A indicação de que o consumidor está dispensado do ônus da prova quando sua alegação for verossímil constitui, em certa medida, um truísmo, desde que se reconheça que a verdade, na perspectiva do processo, não corresponde à “manifestação daquilo que é ou existe tal como é” (aletheia), mas se refere “à precisão, ao rigor e à exatidão de um relato” (veritas)[7] , que tem como oposto a mentira ou a falsificação.

O juízo, porque trabalha com o passado, tem de se contentar com a veritas, ou seja, com os relatos ou enunciados tidos como verdadeiros, já que, de ordinário, não lhe é possível alcançar a aletheia, que corresponde àquilo que é[8] . Isso significa que, em última análise, a discussão travada pelas partes acerca da verdade dos fatos redunda, sempre, para o juízo, em uma decisão acerca do verossímil.

Kazuo Watanabe considera que, no que diz respeito à verossimilhança, não haveria uma genuína inversão do ônus da prova, mas simples aplicação do disposto no art. 335 do CPC, que estabelece o emprego das regras de experiência comum, subministradas pela observação do que ordinariamente acontece:

“O que ocorre, como bem observa Leo Rosenberg, é que o magistrado, com a ajuda das máximas de experiência e das regras de vida, considera produzida a prova que incumbe a uma das partes. Examinando as condições de fato com base em máximas de experiência, o magistrado parte do curso normal dos acontecimentos e, porque o fato é ordinariamente a conseqüência ou o pressuposto de um outro fato, em caso de existência deste, admite também aquele como existente, a menos que a outra parte demonstre o contrário. Assim, não se trata de uma autêntica hipótese de inversão do ônus da prova.”[9]

A Lei, de acordo com o festejado jurista, ao fazer referência à verossimilhança buscou apenas explicitar uma regra já existente, com propósitos didáticos.

Com efeito, não se afigura admissível a inversão do ônus probatório com fundamento em verossimilhança da alegação se não se tem pelo menos uma prova indireta (indício) da qual se possa inferir que provavelmente é verdadeira a alegação do consumidor.

O juízo de verossimilhança é formado, portanto, a partir da prova indiciária, que possibilita ao juiz realizar uma associação entre dois fatos: um comprovado (o fato indiciário) e outro apenas alegado (o fato constitutivo do direito do consumidor). A prova do primeiro permite a ilação ou presunção de que o último também ocorreu, por lhe ser conseqüência ordinária. Há, em tal caso, simples praesumptio hominis[10] realizada pelo julgador. Mas sem esse indício mínimo, não há de onde extrair a verossimilhança da alegação.

Em caso de absoluta ausência de provas, a inversão do onus probandi ainda será possível, mas somente com fundamento na hipossuficiência do consumidor, não na verossimilhança da alegação.


2.3 Alternatividade dos requisitos


A interpretação mais consentânea com a letra e com o espírito do texto legal é a que enxerga os requisitos da hipossuficiência e da verossimilhança como alternativos.[11]

A alternatividade é indicada pela interpretação literal ou gramatical do dispositivo, que utiliza a conjunção disjuntiva ou alternativa “ou” (em lugar da aditiva ou copulativa “e”) a separar os dois requisitos.

Para que se pudesse interpretar a conjunção alternativa (“ou”) como aditiva (“e”), caberia demonstrar que a inclusão da primeira no texto legal foi de todo equivocada. A conclusão pela necessária cumulatividade dos requisitos teria de ser precedida da demonstração de que a interpretação literal (que é, francamente, a mais favorável ao consumidor), seria ilógica, desarrazoada ou extravagante. Isso porque, conforme preleciona Ferrara: “Deve-se partir do conceito de que todas as palavras têm no discurso uma função e um sentido próprio, de que neste não há nada supérfluo ou contraditório, e por isso o sentido literal há-de surgir da compreensão harmônica de todo o contexto.”[12]

O que se verifica, porém, é que a inversão do ônus da prova com fundamento isolado em cada um dos requisitos legais não acarreta ilogismo.

A conclusão, de parte da doutrina, de que os requisitos são cumulativos parte da premissa equivocada de que uma alegação ou é verossímil (crível ou que pode ser verdadeira), ou é inverossímil (incrível ou que não pode ser verdadeira): tertium non datur. Engendra-se a aplicação, aqui, do princípio do terceiro excluído. Se uma alegação não pode ser reputada verossímil, então é porque essa alegação é inverossímil, e, portanto, não autoriza ou justifica a inversão do ônus da prova. Conseqüentemente, a hipossuficiência não seria requisito bastante, em si mesmo, para autorizar a inversão do ônus da prova, por não ser razoável presumir verdadeiro um fato inverossímil, ou seja inacreditável, sem visos de verdade.

Ainda de acordo com o raciocínio empregado pelos defensores da cumulatividade dos requisitos, se a hipossuficiência necessariamente deve vir acompanhada da verossimilhança da alegação (porque não se admite a inversão probatória em caso de consumidor hipossuficiente que faz alegação inverossímil), não há como conceber, por ilógica juridicamente, a inversão do ônus da prova com base na só verossimilhança da alegação, pois do contrário a hipossuficiência (que não pode vir desacompanhada da verossimilhança da alegação) não desempenharia nenhum papel relevante na inversão do ônus da prova.

Tomado, porém, o vocábulo “verossímil” em uma acepção menos estreita, percebe se não haver dificuldade em considerar os requisitos legais, da hipossuficiência e da verossimilhança da alegação, como fundamentos alternativos.

O vocábulo verossímil não significa apenas o que pode ser verdadeiro, mas também o que apresenta probabilidade de ser verdade. As definições trazidas pelos léxicos demonstram que o vocábulo verossímil é multifacetado, polissêmico. Tanto pode se referir a algo frágil ou tênue (como a simples plausibilidade ou possibilidade de que a alegação seja verdadeira) quanto a algo robusto ou sólido (como a probabilidade de que o alegado seja verdade).

Como já indicado anteriormente, o Dicionário Aurélio faz referência ao vocábulo provável como um dos sentidos de verossímil. O Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa, de Francisco Fernandes, registra, como sinônimos de verossímil, provável, plausível, crível, expressões que apresentam cargas semânticas diferenciadas, que denotam uma variação de intensidade ou de grau no conceito de verossímil.

O mestre Kazuo Watanabe observa que: “O Juízo de verossimilhança ou de probabilidade, como é sabido, tem vários graus, que vão desde o mais intenso até o mais tênue.”[13]

Assentada a premissa de que a verossimilhança é de intensidade variável (indo da frágil possibilidade até a forte probabilidade), passa a ser perfeitamente aceitável interpretar como alternativos os requisitos da verossimilhança e da hipossuficiência.

A verossimilhança que autoriza a inversão do ônus da prova não é aquela correspondente à simples possibilidade (ou plausibilidade) de a alegação ser verdadeira, mas aquela que configura verdadeira probabilidade. É a essa verossimilhança – a do provável – que se refere o art. 6º, VIII, do CDC.

De outro lado, a hipossuficiência, isoladamente, pode autorizar a inversão do ônus da prova, bastando que o fato não seja inverossímil.


3. A inversão do ônus da prova em prol do consumidor réu


A inversão do ônus da prova não é restrita a casos em que o consumidor se encontra na posição processual de autor. Também quando o consumidor se encontra na qualidade de réu pode surgir a necessidade da inversão do ônus probatório.

O art. 333, II, do CPC, coloca sobre os ombros do réu o ônus de provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. A alegação de algum fato dessa natureza pelo réu configura a chamada defesa de mérito indireta. Imagine-se a propositura de demanda por fornecedor de serviços, que esteja a cobrar valor supostamente devido pelo réu consumidor. Este contesta, alegando nada dever, em razão de novação, efetuada após a contratação dos serviços.

Ordinariamente, cabe ao réu a alegação de fato modificativo do direito do autor. Em se tratando, porém, de réu consumidor que se enquadre na moldura da hipossuficiência, aplicável será a regra do art. 6º, VIII, do CDC. A inversão do ônus da prova pode, então, se verificar em prol do consumidor réu, para que esse se veja livre do fardo consistente em comprovar fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.


4. Inversão do ônus financeiro


A regra, no tocante às despesas processuais, é a de que os custos da prova devem recair, de ordinário, sobre aquele a quem a prova interessa (art. 19 do CPC). Assim, se o fato não depende de comprovação pelo consumidor, em razão da inversão do ônus da prova, caberá ao fornecedor, a quem interessa a prova, arcar com as despesas respectivas. Isso vale não apenas para a prova requerida pelo fornecedor, mas também para a determinada de ofício pelo juízo (se a prova interessar ao fornecedor).

Desse modo, em sendo o caso de inversão do ônus da prova, não há como impor ao consumidor o pagamento de prova que, em razão da inversão, tenha passado a constituir interesse do fornecedor. Em tal situação, à evidência, a inversão do ônus financeiro se opera junto com a inversão do ônus da prova, como conseqüência lógica dessa.

Mas não há confundir a inversão do ônus da prova com a simples inversão do ônus financeiro, para impor ao fornecedor o pagamento das despesas relacionadas com a prova que somente o consumidor requereu ou que só a este interesse.

Com efeito, nada impede que, a despeito da inversão do onus probandi a seu favor, o consumidor queira produzir prova acerca de algum dos fatos que alega. A questão não é meramente acadêmica, porque a inversão do ônus probatório, por si só, não assegura ao consumidor o êxito na demanda, já que sempre haverá a possibilidade de o fornecedor se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. Pois bem, em tal situação, embora seja caso de inversão, caberá ao consumidor arcar com os custos da prova que requereu. E nem poderia ser diferente, pois não seria razoável que, por iniciativa exclusiva do consumidor, fossem impostos ao fornecedor os custos de uma prova que este não quisesse produzir.

De outro lado, em se tratando de prova cuja produção foi determinada de ofício pelo juízo, cabe verificar quem tem interesse jurídico na produção de tal prova, para estabelecer a quem tocará o pagamento antecipado das respectivas despesas. Se a prova interessar (do ponto de vista processual) a ambas as partes, as despesas deverão ser pagas pelo fornecedor, por força da inversão do encargo probatório.


5. Regra de procedimento ou regra de julgamento? O momento em que se opera a inversão e o princípio da ampla defesa


Tem predominado na doutrina a idéia de que o texto do art. 6º, VIII, do CDC estabelece regra de procedimento e não regra de julgamento. Em conseqüência, considerando que o caso é de aplicação do referido dispositivo legal, caberia ao juízo, antes de prolatar sentença, determinar a inversão do ônus da prova.

Essa interpretação dada ao texto do art. 6° vem escorada no argumento de que, ausente a comunicação prévia do juízo acerca da inversão do ônus da prova, o fornecedor não teria como saber que sobre ele recaía o peso de produzir prova que refutasse as alegações deduzidas pelo consumidor. A sentença que viesse a ser prolatada, com aplicação da inversão do ônus probatório, surpreenderia inteiramente o fornecedor, que, até então, supunha que o ônus recaía sobre os ombros do consumidor, por força da regra geral de distribuição dos ônus da prova.

O argumento tem forte apelo emocional, porque se apega a princípios constitucionais de alta linhagem, quais sejam, os princípios garantidores do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição Federal), cuja simples invocação já provoca no jurista (e principalmente no juiz) natural precaução.

A sedução do argumento, todavia, não resiste a uma análise mais detida da questão. Com efeito, bem focalizado o problema, pode-se concluir que a interpretação e aplicação do texto legal em comento como simples regra de julgamento não ofende aos princípios constitucionais invocados.

A idéia, por muitos sustentada, de que o disposto no art. 6º, VIII, do CDC constitui regra de procedimento parte da premissa de que, antes da manifestação do juízo acerca da inversão do ônus da prova, o fornecedor ainda se encontra sob o regime geral do art. 333 do CPC, ou, pelo menos, supõe que assim se encontra. A manifestação prévia do juízo teria por finalidade determinar ou estabelecer que o caso sub examen passará a se submeter ao regime especial do art. 6° do CDC. A partir dessa manifestação judicial – e só então – saberia o fornecedor que é seu o ônus da prova, e a ele seria conferida a oportunidade de se desincumbir do encargo que lhe é entregue – e com o qual, até então, não contava.

Não é acertado, todavia, o entendimento de que, enquanto não estabelecida judicialmente a aplicação da regra da inversão do ônus da prova, as partes estejam – ou necessariamente suponham que estejam – sob a influência da regra geral do art. 333 do CPC.

A despeito do que parece indicar, o texto do art. 6°, VIII, do CDC não está a conferir ao juízo um poder discricionário, de inverter ou não o ônus da prova. A inversão do ônus da prova é produzida ope legis, ou seja, decorre da própria lei, uma vez presentes os requisitos estabelecidos em lei, os quais são apenas reconhecidos no caso concreto pelo juízo (no momento de proferir a sentença).

O juízo, quando considera pertencente ao fornecedor o ônus da prova, o faz porque a lei o determina, não porque assim entenda conveniente. Não se está a tratar de atividade discricionária do juízo, mas de atividade vinculada à lei.

De acordo com esse raciocínio, não é correta a distinção, realizada por parte considerável da doutrina, entre hipóteses de inversão “legal” – de que seria exemplo o art. 38 do CDC, que cuida do ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária – e de inversão “judicial” do ônus da prova – na qual se enquadraria o art. 6º, VIII, do CDC. Todos os casos de inversão do ônus da prova são legais, na medida em que os requisitos para a inversão vêm estabelecidos em lei.[14]

É certo que os requisitos previstos no art. 6º, VIII, do CDC (hipossuficiência e verossimilhança) constituem aquilo que a doutrina denomina de conceitos ou termos jurídicos indeterminados, em relação aos quais há grande imprecisão. Essa imprecisão, todavia, não transforma o poder do juízo em discricionário, porque tal poder pressupõe, sempre, a liberdade de escolha de agir, com base em juízo de conveniência e oportunidade.

A existência de uma discricionariedade judicial é repudiada vivamente por Eros Roberto Grau, para quem o juiz (intérprete autêntico, de acordo com concepção kelseniana que adota), sempre que interpreta um texto legal, pratica atividade vinculada: “O que se tem denominado de discricionariedade judicial é poder de criação de norma jurídica que o intérprete autêntico exercita formulando juízos de legalidade (não de oportunidade). A distinção entre ambos esses juízos encontra-se em que o juízo de oportunidade comporta uma opção entre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente; o juízo de legalidade é atuação, embora desenvolvida no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve atado, retido, pelo texto normativo e, naturalmente, pelos fatos.”[15]

É certo que os conceitos juridicamente indeterminados impõem ao intérprete um esforço de exegese mais refinado, que muitas vezes resvala no subjetivismo e provoca dúvida acerca do alcance do dispositivo legal e de sua aplicação ao caso concreto. Mas as eventuais dificuldades na interpretação do texto jurídico ou na determinação da sua aplicação ao caso não são trazidas apenas pelos conceitos juridicamente indeterminados. Mesmo sem a presença destes, o texto legal pode exigir esforços interpretativos consideráveis. Todo e qualquer texto, na verdade, exige interpretação.

Conforme observa Ronaldo Poletti: “por mais que o jurista busque a expressão clara de uma linguagem precisa e que o formulador da norma a manifeste de forma escorreita, sempre haverá dúvidas e necessidade de interpretar, até porque o direito é um conjunto integrado de normas e de institutos. Não prescindem eles de uma interpretação, como já foi dito, para a sua aplicação. Na verdade, o direito é também uma arte e os juristas são artistas que o interpretam.”[16]

A doutrina moderna já abandonou a noção de que há textos normativos que, pela sua clareza gramatical, dispensam interpretação (in claris cessat interpretatio). A interpretação do texto e a respectiva subsunção do fato à norma são tarefas constantes do jurista. Nesse sentido, a lição de FERRARA: “Aplica-se a interpretação a todas as leis, sejam claras ou sejam obscuras, pois não se deve confundir a interpretação com a dificuldade da interpretação.” Assim também o ensino límpido de CARLOS MAXIMILIANO: “Os domínios da Hermenêutica se não estendem só aos textos defeituosos; jamais se limitam ao invólucro verbal: o objetivo daquela disciplina é descobrir o conteúdo da norma, o sentido e o alcance das expressões do Direito. Obscuras ou claras, deficientes ou perfeitas, ambíguas ou isentas de controvérsia, todas as frases jurídicas parecem aos modernos como suscetíveis de interpretação.”[17] De igual teor o ensino de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, para quem: “Toda lei está sujeita a interpretação. Toda norma jurídica tem de ser interpretada, porque o direito objetivo, qualquer que seja sua roupagem exterior, exige seja entendido para ser aplicado, e neste entendimento vem consignada a sua interpretação. Inexato é, portanto, sustentar que somente os preceitos obscuros, ambíguos ou confusos exigem interpretação, e que a clareza do dispositivo a dispensa, como se repete na velha parêmia in claris cessat interpretatio”.[18]

Os textos normativos de direito material constantemente trazem conceitos juridicamente indeterminados, os quais exigem dos potenciais ou virtuais destinatários a realização de juízo de valor subjetivo. O Código Civil é pródigo no emprego de conceitos dessa natureza. Assim é que, por exemplo, o art. 501 outorga proteção ao possuidor que tem “justo receio” de ser molestado em sua posse; o art. 199, I, dispensa o edital de proclamas quando ocorrer “motivo urgente” que justifique a imediata celebração do casamento; o art. 160, II, considera lícita a deterioração ou destruição de coisa alheia, a fim de remover “perigo iminente”; o art. 1.081, II, desobriga o proponente quando a resposta feita a pessoa ausente não chegar em “tempo suficiente”; o art. 1.250 autoriza a suspensão do uso e gozo da coisa dada em comodato, antes de findo o prazo convencional, em caso de “necessidade imprevista e urgente”. Muitos outros exemplos poderiam ser extraídos do Código Civil[19] . E o rol iria se multiplicar, se considerados outros diplomas legais.

Nos textos penais também com grande freqüência são encontrados conceitos vagos e imprecisos, muitos dos quais classificados pela doutrina como elementos normativos do tipo[20] . É o caso do vocábulo “indevido” ou “indevidamente”, contido nos tipos penais dos artigos 151, caput, e seu § 1º, I e II; 162, 296, § 1º, II; 311, § 2º; 316, § 2º; 317, 319, § 2º, todos do Código Penal; da expressão “mulher honesta”, trazida pelos artigos 215, 216 e 219; da expressão “justa causa”, contida nos tipos penais dos artigos 153, 154, 244, 246 e 248[21] .

Neste ponto cabe uma ponderação: não se afigura congruente ou razoável que, de um lado, na esfera do direito processual civil, não seja possível exigir do fornecedor de produtos e serviços que realize um juízo de valor subjetivo acerca da incidência ou não, no caso concreto, da regra da inversão do ônus da prova; enquanto, de outro lado, na esfera penal, seja possível exigir do indivíduo que realize um juízo tão ou mais subjetivo para interpretar um tipo penal que contenha um elemento normativo ou qualquer outro conceito jurídico indeterminado para saber se sua conduta constitui ou não um delito.

Se em relação à lei penal incriminadora – cujo tipo funciona como garantia de que os indivíduos não serão punidos por conduta que nele não se enquadre – é aceitável a idéia da subjetividade conceitual, a impor um esforço de exegese de todos os componentes da sociedade, como não admitir subjetividade acerca dos conceitos de hipossuficiência e verossimilhança, a exigir semelhante esforço das partes em um processo que envolva relação de consumo?

Observe-se que, ordinariamente, no processo a parte se encontra representada por advogado, pessoa supostamente conhecedora dos textos legais e que, por dever de ofício, tem que interpretá-los.


5.1 Os graus de certeza na aplicação do texto legal


Não se pode deixar de considerar, também, que, a despeito da subjetividade que envolve os conceitos de hipossuficiência e de verossimilhança, há situações fáticas que se subsumem de forma induvidosa ao enquadramento normativo – seja porque a condição de hipossuficiente é evidente, seja porque a verossimilhança dos fatos narrados salta aos olhos. Em tais situações, configuraria ficção inaceitável a idéia de que a inversão do ônus da prova na sentença importaria violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório. Sustentar o contrário constituiria manifesta fetichização dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Celso Antonio Bandeira de Mello observa que os conceitos indeterminados ou fluidos só apresentam tal característica quando considerados em abstrato. Todavia, quando confrontados com situações reais ou concretas, ganhariam (ou poderiam ganhar) consistência e univocidade.[22] Preleciona o renomado administrativista que: “mesmo que vagos, fluidos ou imprecisos, os conceitos utilizados no pressuposto da norma (na situação fática por ela descrita, isto é, no ‘motivo legal’) ou na finalidade, têm algum conteúdo mínimo indiscutível. De qualquer deles se pode dizer que compreendem uma zona de certeza positiva, dentro da qual ninguém duvidaria do cabimento da aplicação da palavra que os designa e uma zona de certeza negativa em que seria certo que por ela não estaria abrigada. As dúvidas só têm cabida no intervalo entre ambas.”[23] Assim, pelo menos naqueles casos que se encontrassem na denominada zona de certeza positiva,[24] não haveria como negar a possibilidade de inversão do ônus da prova na própria sentença.

Imagine-se que todas as situações que envolvam relação de consumo estejam ordenadas em uma escala que abranja desde os casos em que claramente deve haver a inversão do ônus da prova até aqueles em que claramente não cabe a inversão. Haverá um grupo de casos, em uma das extremidades da escala, em que a incidência da regra da inversão do ônus da prova será irrefutável (v. g., na situação do trabalhador rurícola, simplório e analfabeto, que adquire, à prestação, mercadoria defeituosa em uma grande loja de departamentos), e outro grupo, na outra extremidade da escala, em que a regra da inversão do ônus da prova é evidentemente inaplicável (v. g., no caso de consumidor pessoa jurídica, de grande poder econômico, que apresenta alegação facilmente comprovável por prova pericial, em demanda ajuizada em face de modesta pessoa física fornecedora de produtos ou serviços).

Na zona próxima do meio dessa escala se encontram os casos em que não está claro se deve ou não haver a inversão do ônus da prova. Em relação aos casos que se encontram nessa zona intermédia, de incerteza, pode haver divergência de interpretação quanto à incidência ou não da regra de inversão. Mas, em todos os casos que se encontrem na primeira extremidade da escala, dúvida não haverá acerca da incidência da regra. Nesses casos – situados na primeira extremidade da escala – não seria nem de longe razoável invocar o argumento de que, sem a manifestação prévia do juízo, a inversão do ônus da prova acarretaria violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório. A aplicação da norma do art. 6º, VIII, do CDC como regra de julgamento, com a inversão do ônus da prova na própria sentença, nenhuma surpresa causaria ao fornecedor de produtos ou serviços.


5.2 A situação objetiva de incerteza na aplicação do texto legal


Poder-se-ia, no entanto, argumentar que, pelo menos em relação aos casos que se encontrassem na zona intermediária (em que a aplicação da regra da inversão do ônus da prova fosse incerta), haveria necessidade de manifestação prévia do juízo, para eliminação da incerteza objetiva existente acerca da distribuição do ônus da prova.

A vulnerabilidade do último argumento reside exatamente na premissa de que o fornecedor deva, efetivamente, com toda a certeza, saber que o referido ônus a ele está entregue, porque poderá deixar de produzir prova na suposição de que o ônus da prova recaía sobre os ombros do consumidor.

Suficiente é que o fornecedor, objetivamente, possa supor que o ônus lhe pertence. E essa suposição sempre poderá e deverá ser feita pelo fornecedor, já que os requisitos para a inversão do ônus da prova estão indicados na lei e, por isso, são vinculativos. Cabe àquele que se encontre na posição de fornecedor de produtos ou serviços precatar-se quanto à possibilidade de interpretação, no caso concreto, de que o ônus da prova lhe incumbe. Se não desejar assumir o risco de uma divergência interpretativa, deverá envidar os esforços necessários para produzir todas as provas que lhe aproveitem.

Neste sentido, o ensino da notável Professora e Magistrada Cristina Tereza Gáulia, para quem o juiz não tem, como parcela de seu múnus, o encargo de alertar os fornecedores quanto à interpretação a ser dada ao dispositivo aqui enfocado, de modo que, quando demandados, os fornecedores: “deverão de pronto municiar-se com as provas necessárias e demonstrar aquelas excludentes de responsabilidade que o Código de Defesa do Consumidor admite.”[25] Entende a referida autora, expressamente, que: “não está o juiz obrigado a avisar ou alertar a parte contrária para a inversão do onus probandi, se a lide versar sobre relação de consumo.”[26]

De todo modo, sempre poderá ser manifestado o inconformismo contra a interpretação dada na sentença em prol da inversão probatória. Caberá ao fornecedor interpor o recurso cabível contra essa sentença, para sustentar seu entendimento contrário à aplicação da norma do art. 6º, VIII, do CDC.


5.3 O risco decorrente da valoração. A igualdade entre os litigantes


É importante, aqui, salientar um ponto: o texto do art. 6º, VIII, impõe a realização de um juízo de valor subjetivo a ambas as partes. Impõe-se ao consumidor, tanto quanto ao fornecedor, realizar juízo de valor quanto à presença dos requisitos que determinam a inversão do ônus da prova. O consumidor, quando ajuíza sua demanda, o faz sem saber qual será o entendimento do juízo a respeito da divisão do ônus probatório. A inversão do ônus da prova como regra de julgamento preserva o princípio da igualdade entre as partes.

Imagine-se que o consumidor esteja em dúvida sobre a conveniência de ajuizar imediatamente ação em face do consumidor, porque ainda não reuniu toda a prova documental que poderia para demonstração do fato constitutivo de seu direito (faltaria, por exemplo, algum documento que teria de ser obtido em localidade muito distante; ou o documento faltante estaria em poder de terceiro, que se encontra viajando). Aplicável que fosse a inversão do ônus probatório, talvez essa prova não fosse necessária para o consumidor. Caberá, então, ao próprio consumidor valorar se estão presentes os requisitos legais estabelecidos para a inversão, a fim de decidir se ajuíza ou não, desde logo, a demanda. Caso decida pelo ajuizamento imediato da ação, sem juntar o documento faltante, estará assumindo o risco de o juízo considerar que não é caso de inversão do ônus da prova, o que provavelmente redundaria em improcedência da demanda.

Verifica-se, pois, que a inversão do ônus da prova é, para o consumidor, tanto quanto para o fornecedor, situação de dúvida – que será tanto maior, quanto mais se encontre o fato na chamada zona de incerteza de aplicação da norma. Razoável e isonômico, assim, o entendimento de que ambas as partes tenham que se submeter a esse estado de dúvida sobre a aplicação, no caso concreto, da inversão do ônus probatório.

Já o entendimento de que o fornecedor, na qualidade de réu, deve ser alertado previamente sobre a inversão provoca situação de desequilíbrio, pois favorece um dos litigantes – em detrimento justamente daquele que a lei quis proteger. Afronta-se, com tal entendimento, o princípio da isonomia.

Além disso, a mesma surpresa que o fornecedor réu poderia alegar também poderia ser invocada pelo autor consumidor, no caso de o juízo ter manifestado, no curso do processo, ser caso de inversão do ônus da prova e, posteriormente, no momento de prolatar a sentença, ter reconsiderado seu entendimento, à luz das provas que vieram a ser produzidas. Com efeito, depois de o juízo manifestar que o caso é de inversão do ônus da prova, nada impede que, por ocasião do julgamento, à luz das novas provas, reconsidere seu entendimento e julgue contra o autor, por entender não comprovado o fato constitutivo do alegado direito deste. Nem por isto poderá o autor consumidor alegar surpresa, pois deveria ter se precatado contra o risco de, ao final, o juízo considerar não ser caso de inversão do onus probandi. E nem se diga, que, em tal situação, deveria o juízo reabrir a fase instrutória para permitir ao consumidor a produção de provas.

O que se pretende sustentar é, justamente, que, em se tratando de relação de consumo, cabe a ambas as partes assumir os riscos das táticas ou posturas que desejem adotar no processo. Se entenderem que o ônus da prova é da parte contrária, poderão se abster de produzir prova, mas o farão por conta e risco próprios. Caso não desejem correr riscos, devem produzir todas as provas que estiverem ao seu alcance.


5.4 A falta de clareza do texto legal


Contribui sensivelmente para a idéia de que a norma aqui analisada constitui regra de procedimento a forma como foi redigido o dispositivo legal. É empregado o substantivo “inversão” (como uma das formas de “facilitação” da defesa dos direitos do consumidor), que pode ser traduzido como “ato de inverter”[27] . O dispositivo diz, ainda, que a inversão do ônus da prova ocorrerá quando “a critério do juiz”, for verossímil a alegação ou for o consumidor hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência. Uma tal redação sugere que a entrega do ônus probatório ao fornecedor dependa de um “ato” ou provimento específico do juiz, pelo qual se decida, discricionariamente, acerca da inversão do ônus da prova.

É evidente que, embora importante, a interpretação literal não é determinante do melhor sentido do texto legal, pois constitui mero ponto de partida para o estabelecimento da norma (assim como do seu alcance). Poderia o dispositivo ter sido redigido sem o emprego do vocábulo “inversão” ou da expressão “a critério do juiz”, e, ainda assim, persistir o entendimento de parte da doutrina de que o texto estaria a consagrar regra de procedimento. Mas talvez fosse mais clara ou palatável a interpretação do dispositivo como regra de julgamento se, deslocado do Capítulo referente aos Direitos Básicos do Consumidor[28] , ele se limitasse a indicar que o ônus da prova é do fornecedor quando o consumidor for hipossuficiente ou quando verossímil sua alegação. Uma tal redação seria mais fiel ao sentido da norma aqui defendido.

Cristina Teresa Gáulia observa, com propriedade, que: “quando se fala em direito subjetivo da parte, como aqui é o caso, a jurisprudência tem entendido que, em verdade, o ‘a critério do juiz’, que corresponde ao ‘poderá’ inserido em outros dispositivos legais, há de ser interpretado como ‘deverá’, principalmente em sede consumerista, onde as normas são de ordem pública e, por conseguinte, de aplicação obrigatória.”[29]


5.5 Pas de nulité sans grief


Abstraídas as considerações anteriores e aceita a tese de que o texto do art. 6º, VIII, do CDC cria uma regra de procedimento, ainda assim a inversão do ônus da prova na própria sentença somente poderia ser considerada como causa de nulidade se demonstrado o efetivo prejuízo para a ampla defesa do fornecedor.

Não bastaria a simples alegação de que a inversão não foi determinada previamente pelo juízo. O fornecedor precisaria demonstrar que, se tivesse sido alertado pelo juízo, teria outra prova a produzir, hábil para comprovação de fato que pudesse alterar o julgamento da demanda.

São aplicáveis, aqui, as normas dos artigos 154[30] e 244 do CPC[31] , que consagram o princípio da instrumentalidade das formas ou da finalidade. A forma nada mais é do que meio para consecução de um fim. Alcançada a finalidade essencial, válidos serão os atos processuais, ainda que se tenham distanciado da forma idealizada para a sua prática[32] ou tenham sido praticados em desconformidade com o modelo legal[33] .

O princípio da instrumentalidade das formas ou da finalidade é aplicável mesmo aos casos de nulidade absoluta ou de inexistência. Nesse sentido o ensino de Antonio Janyr Dall’Agnol, que observa que: “a regra contida no art. 244 abrange tanto as hipóteses de nulidade absoluta quanto as de nulidade relativa, ou de anulabilidade”.[34] Fábio Gomes confere ainda maior amplitude ao princípio da finalidade, que alcançaria mesmo os casos de nulidade cominada: “A norma que se contém no art. 244 abrange tanto os casos de nulidade relativa como os de nulidade absoluta. Engloba, por igual, os atos praticados de forma diversa daquela prevista em lei, ainda que sob a cominação de nulidade, desde que alcancem a finalidade.”[35]

Assim, não demonstrado pelo fornecedor, em grau de apelação, que deixou de produzir alguma prova a seu favor, que poderia ter influência no julgamento da demanda, não seria caso de anular a sentença, por falta de demonstração de efetivo prejuízo.

O entendimento contrário constituiria a consagração da forma sobre o conteúdo ou a defesa do princípio (da ampla defesa) pelo princípio, teoricamente considerado – e não pela defesa concreta do bem a que o princípio visa a proteger.


6. A inversão do ônus da prova no juizado especial


A interpretação da norma do art. 6º, VIII, do CDC como regra de julgamento ganha importância em relação às causas julgadas pelo juizado especial cível, considerando a especialidade do procedimento previsto na Lei nº 9.099/95. Com efeito, o procedimento do juizado especial é caracterizado pela maior oralidade e concentração dos atos processuais. A contestação, oral ou escrita, é apresentada na própria audiência (art. 30 da Lei nº 9.099/95), na qual são ouvidas as partes, produzidas as provas (ainda que não requeridas previamente – art. 33), e, em seguida, é proferida a sentença (art. 28).

Interpretada que fosse a norma do art. 6º, VIII, do CDC como regra de procedimento, dois seriam os momentos, no juizado especial, que poderiam ser imaginados para a inversão do ônus probatório quando o consumidor fosse o autor: a) por ocasião do despacho da petição inicial; b) na audiência de instrução e julgamento.

A inversão do ônus probatório quando do despacho da petição inicial seria inadequada porque forçaria um juízo de valor prematuro sobre a questão. Mesmo a doutrina que interpreta a norma em comento como regra de procedimento reconhece que, antes da resposta do réu, o juízo não dispõe de todos os dados necessários para aferir se é caso de inversão. Somente depois de contestada a demanda e realizada a instrução poderá o juízo julgar adequadamente acerca da configuração da hipossuficiência ou da verossimilhança da alegação do consumidor (principalmente desta última).[36] Isso porque uma alegação reputada, a princípio, verossímil pode perder essa característica diante da narrativa e das provas constantes da contestação. Do mesmo modo, a idéia inicial de hipossuficiência do consumidor pode ruir por completo depois de contestada a demanda.

Acresça-se a isso uma dificuldade de ordem prática: na grande maioria dos casos, o juiz, devido ao grande volume de demandas ajuizadas, só vem a examinar a petição inicial pouco antes da audiência de instrução e julgamento (quando não a vem examiná-la apenas na própria audiência). É o próprio cartório quem, comumente, se desincumbe de providenciar a designação de data para as audiências e a citação do réu.

A inversão do ônus probatório na própria audiência de instrução e julgamento traria o enorme inconveniente de obrigar o juízo a adiar a audiência para propiciar ao réu a oportunidade de produzir as provas que pretendesse. Haveria dilação anômala, com evidente prejuízo para a desejada celeridade do procedimento.

A interpretação do texto que trata da inversão do ônus probatório como regra de juízo é a única que preserva os princípios que norteiam o juizado especial cível, onde avulta o número de processos que cuidam de relação de consumo. Mesmo que se considerasse, de ordinário, que a norma do art. 6º, VIII, do CDC constitui regra de procedimento, impositiva seria uma interpretação diferenciada em relação ao juizado, em consideração aos princípios que norteiam o seu procedimento.

O art. 2º da Lei 9.099/95 preconiza que o processo, no juizado, deve ser orientado pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. E o seu artigo 6º impõe ao juiz adotar em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.

Em atenção aos princípios que informam o procedimento do juizado especial cível, não há espaço para a atitude do fornecedor de apostar na distribuição dos encargos probatórios. Cabe a ambas as partes, na audiência de instrução e julgamento, trazer, desde logo, todas as provas que possuam relacionadas com a causa. Normalmente, outra oportunidade não se lhes abrirá.


7. A inversão do ônus da prova no juízo comum


Argumenta-se que, no procedimento ordinário, não há como sustentar que a norma do art. 6º, VIII, do CDC constitui regra de julgamento, já que o art. 331, § 2º, do CPC impõe ao juízo, depois de frustrada a conciliação na audiência indicada no caput do artigo, fixar os pontos controvertidos, para, em seguida, determinar a produção das provas a serem produzidas. O argumento não colhe, porque se equivoca quanto à verdadeira tarefa desempenhada pelo juízo quando da fixação dos pontos controvertidos na audiência do art. 331 do CPC.

Ponto controvertido (ou fato controvertido), para fim de aplicação do § 2º do art. 331, é o fato alegado por uma das partes e impugnado pela outra, o qual seja pertinente ou relevante para o julgamento da causa, não esteja comprovado ou refutado pelas provas já produzidas, e cuja comprovação seja possível.[37]

Incumbe, pois, ao juízo identificar quais são os fatos sobre os quais penda controvérsia, para, então, decidir sobre o cabimento das provas requeridas pelas partes. Não exige a Lei que o juízo, no desempenho dessa sua tarefa, tenha de indicar ou informar a qual das partes toca o ônus probatório em relação a cada fato alegado. Suficiente é a indicação dos fatos controvertidos e a decisão acerca das provas que podem ser produzidas (por ambas as partes) em relação a esses fatos.

Assim, alegado um fato, que vem a ser impugnado pelo réu, incumbirá ao juiz indicar tal fato como ponto controvertido. Em seguida, entendendo que a veracidade do fato depende da produção de prova testemunhal, decidirá o juízo pelo deferimento dessa prova, que poderá ser produzida por ambas as partes – não apenas por aquela a quem toca o ônus da prova.

A parte a quem não toca o encargo probatório é, por óbvio, facultado produzir prova de que o fato alegado não é verdadeiro ou é inexistente. Não deve ela, apenas por estar livre do onus probandi, permanecer no imobilismo, à espera da atuação ou do movimento de seu adversário. Diferentemente do que ocorre no jogo de xadrez, os movimentos no processo podem ser simultâneos. Daí porque ser equivocado o entendimento de que o juízo tenha de definir, por ocasião da audiência do art. 331, sobre quem pesa o ônus de provar.

Reconheça-se, no entanto, que há situações nas quais o juiz, forçosamente, terá de decidir acerca do ônus probatório. É o que ocorrerá, por exemplo, quando ambas as partes requererem a produção de prova pericial, ou quando esta for determinada pelo próprio juízo. Em tais casos, em atenção à regra de que as despesas dos atos processuais devem ser antecipadas pela parte que tenha interesse em sua prática[38] , incumbirá ao juízo estabelecer qual das partes deverá arcar com as despesas referentes à prova pericial. Sua decisão terá de vir fundamentada em alguma das normas que cuidam da distribuição dos encargos probatórios (o art. 333 e seus incisos do CPC, ou o art. 6º, VIII, do CDC).


8. A inversão do ônus da prova em segundo grau de jurisdição


Imagine-se que o juízo de primeiro grau tivesse julgado improcedente o pedido formulado pelo consumidor, por entender que este não se desincumbira do ônus, a ele pertencente, da prova da veracidade das alegações iniciais. Cabe indagar se, interposta a apelação, o tribunal poderia reformar a sentença e julgar procedente o pedido, por entender que, na espécie, seria aplicável a regra do art. 6º, VIII, do CDC, de modo que ao fornecedor incumbia a prova de que as alegações do consumidor não eram verdadeiras.

Admitido o entendimento de que a distribuição do ônus da prova para o fornecedor independe de manifestação prévia do juízo, por decorrer de regra de julgamento, não há dificuldade em aceitar a possibilidade de ser reconhecida apenas no tribunal a presunção de veracidade das alegações do consumidor.

Observe-se que, quando as partes produzem provas, não o fazem apenas para o juízo monocrático, de primeiro grau de jurisdição. Fazem-no, também, para o órgão colegiado, de segundo grau de jurisdição, pois o processo não finda com a prolação da sentença.[39]

É equivocado o argumento de que o fornecedor seria surpreendido, porque haveria uma inversão do ônus da prova apenas em grau de recurso, a impossibilitar-lhe a produção de provas.

Como já sustentado anteriormente, a inversão do ônus da prova, não decorre de ato judicial, mas da lei. Desde que presentes os requisitos legais, estará invertido o ônus da prova. O juízo se limita a verificar se estão presentes esses requisitos no momento de julgar a demanda, para, em caso de inexistência de provas suficientes para a solução da controvérsia, decidir a quem pertence o encargo de provar. Caso presentes os requisitos legais, considerará que o ônus cabia ao fornecedor e que, por conseguinte, devem ser reputados verdadeiros os fatos alegados pelo consumidor.

Às partes, tanto como ao juízo, cabe interpretar o dispositivo à luz das circunstâncias concretas, para concluir sobre se é ou não caso de inversão do ônus da prova. Em caso de dúvida objetiva, a prudência recomenda às partes buscar todos os meios de prova para se desincumbir de seu eventual ônus.

Não há que falar, portanto, em surpresa ou cerceamento de defesa no caso de o tribunal julgar a favor do consumidor por considerar – diferentemente do juízo a quo – que o ônus da prova incumbia ao fornecedor, por força da regra do art. 6º, VIII, do CDC.

Ressalve-se aqui a eventualidade de o juízo a quo ter “decidido” antes, expressamente, que o ônus da prova incumbia ao consumidor. Em tal hipótese, a manifestação judicial poderia ter induzido o fornecedor a deixar de produzir prova que lhe favoreceria. Uma vez demonstrada tal situação, e comprovado que, concretamente, poderia o fornecedor ter produzido prova capaz de modificar o julgamento da demanda, caberá ao tribunal – aí, sim – anular a sentença, por cerceamento de defesa.


9. Irrecorribilidade da manifestação do juízo acerca da distribuição do encargo probatório


O entendimento, aqui manifestado, de que a inversão do ônus da prova constitui regra de julgamento não afasta a possibilidade e, até, a conveniência de o juízo, sopesando antecipadamente as circunstâncias concretas, alertar as partes acerca do cabimento ou não da inversão. Embora – insista-se – não esteja obrigado a tanto, o juízo, sempre que considerar importante, poderá esclarecer as partes acerca dessa questão.

Ante tal possibilidade, cabe, pois, indagar se o esclarecimento ou a manifestação do juízo acerca da distribuição do encargo probatório configuraria decisão interlocutória e, conseqüentemente, se seria atacável por recurso de agravo.

Aqueles que enxergam no art. 6º, VIII, do CDC uma regra de procedimento parecem tender pela admissibilidade do agravo de instrumento contra tal manifestação judicial, porque consideram que a inversão não decorre da lei, mas de ato do juízo, a quem cabe “decidir” pelo cabimento ou não da inversão.[40]

Todavia, na perspectiva aqui assumida, de que a inversão do ônus da prova constitui regra de julgamento, a eventual manifestação prévia do juízo acerca da distribuição do encargo probatório configura mero despacho, sem conteúdo decisório suficiente para ensejar a interposição de agravo. Isso porque lhe falta requisito essencial às decisões interlocutórias, qual seja, a aptidão para gerar prejuízo ou gravame.[41]

Como já se observou, nada impede que o juízo, em algum momento do procedimento (notadamente, no procedimento ordinário, por ocasião da audiência do art. 331 do CPC), alerte as partes sobre os encargos probatórios de cada uma. Em casos nos quais a aplicação da regra da inversão do ônus da prova é especialmente duvidosa, é até recomendável que o juízo assim o faça, para alertar os advogados incautos. O fato de não estar o juízo (como aqui se sustenta) obrigado a tanto, não é indicativo de que não possa fazê lo.

De qualquer modo, a precoce manifestação judicial sobre a distribuição da carga probatória será provisória, porque somente no momento de proferir a sentença, quando já inteiramente formado o conjunto probatório, o juízo poderá avaliar em definitivo do cabimento da inversão do onus probandi.
Por ser provisória e precária, a manifestação judicial antecipada ou prematura sobre a inversão do ônus de provar não é capaz de gerar prejuízo ou gravame para as partes. Sempre será possível ao juízo, no momento de proferir sentença, reconsiderar o entendimento anteriormente manifestado. Não há que cogitar de preclusão pro judicato na espécie. Não seria razoável, com efeito, que manifestação judicial tomada com base em elementos de convicção ainda incompletos pudesse ganhar ares de definitividade, vinculando categoricamente o juízo e as partes.

Observe-se que não há nenhuma contradição entre tal entendimento e o manifestado no final do item anterior. Indicou-se anteriormente que é possível que alguma das partes tenha sido induzida pelo juízo a quo, pelos termos peremptórios que possam ter sido empregados, a crer que o ônus da prova fosse da parte contrária, e, por isso, não tivesse produzido prova que lhe coubesse e pudesse produzir. Em tal situação, evidente o prejuízo da parte, que teria direito à anulação da sentença e do processo, para que se lhe permitisse realizar a instrução. Isso não significa, todavia, que a decisão do juízo a quo seja agravável, porque tal decisão – insista-se – embora possa induzir em erro a parte, não vincula as partes ou o juízo, por ter sido proferida sob o signo da provisoriedade.

Há que reconhecer, no entanto, que o juízo terá, necessariamente, que decidir previamente sobre a distribuição dos encargos probatórios quando a demonstração da veracidade de algum fato depender da produção de prova (requerida por ambas as partes ou determinada de ofício pelo Juízo) que deva ser custeada antecipadamente por alguma das partes. É o que ocorrerá, por exemplo, quando o juízo determinar, de ofício, a realização de prova pericial. Para decidir quem deverá arcar, antecipadamente, com o pagamento dos honorários do perito, terá o juízo que decidir a quem interessa a produção da prova, ou seja, a quem incumbe, a princípio, o ônus da prova.
Em tal hipótese, será agravável o provimento que der pela inversão do ônus da prova, por causar efetivo prejuízo à parte a quem se cometeu o encargo de provar. Mas o prejuízo não decorrerá da distribuição do ônus da prova em si, pois, como se viu, a decisão a esse respeito é provisória e poderá ser reconsiderada por ocasião da sentença. O gravame decorrerá da imposição de despesa processual à parte.

Afora hipótese excepcional como a acima mencionada, a manifestação judicial que der pela inversão do ônus da prova não constituirá decisão interlocutória e, em conseqüência, não ensejará a interposição de recurso de agravo, por ausência de prejuízo.


10. Antecipação da tutela fundada em inversão do ônus da prova


Cabe a indagação: em ação ajuizada por consumidor, que tenha direito à inversão do ônus da prova, é possível, no caso de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, a concessão de tutela antecipada, independentemente da existência de prova inequívoca da verossimilhança da alegação?

O eminente Professor Luiz Fux, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, a quem tivemos a oportunidade de formular essa questão, como debatedor, em Seminário organizado pela EMERJ – Escola da Magistratura do Estado Rio de Janeiro, respondeu negativamente, acenando para a inafastabilidade da exigência contida no art. 273, caput, do CPC, que vincula a antecipação da tutela à existência da prova inequívoca (da verossimilhança da alegação).

Uma reflexão mais detida, todavia, envolvendo uma interpretação sistemática dos institutos envolvidos, sugere uma resposta positiva.

A exigência de prova inequívoca da verossimilhança da alegação para a concessão da tutela antecipada parte do princípio de que o adiantamento da prestação jurisdicional (ou de seus efeitos) é situação excepcional, e somente deve ser deferida (em havendo risco de lesão grave ou de difícil reparação) quando o juízo estiver razoavelmente seguro de que os fatos alegados pelo autor são verdadeiros. Como ao autor, de ordinário, incumbe a demonstração da veracidade dos fatos que alega, deve ele trazer ao juízo a prova (inequívoca, na dicção da lei) de tais fatos.

Ora, quando o autor for consumidor hipossuficiente ou apresentar alegação verossímil, o ônus da prova recairá sobre o fornecedor réu. As alegações apresentadas pelo autor, até prova em contrário, devem ser reputadas verdadeiras. Assim, suficiente a configuração de situação de risco de lesão grave ou de difícil reparação para que o juízo antecipe a tutela pleiteada[42] .

Não deve constituir embaraço a esse entendimento a circunstância de que o fornecedor poderá, posteriormente, vir a se desincumbir de seu ônus e demonstrar que não são verdadeiros os fatos alegados pelo consumidor (em favor de quem se antecipara a tutela). Essa circunstância se encontra presente mesmo em caso de apresentação, pelo autor, de prova inequívoca da verossimilhança da alegação, já que prova inequívoca da verossimilhança não é o mesmo que prova incontestável ou irrefutável. Assim, em qualquer caso, mesmo diante de prova que se afigurava inequívoca em um primeiro momento, o réu poderá demonstrar que não são verdadeiros os fatos alegados pelo autor.


11. Considerações finais


O texto do art. 6º, VIII, do CDC, instituidor da inversão do ônus da prova, constituiu uma das mais importantes inovações legislativas para a proteção do consumidor.

Muitas das ações que envolvem relação de consumo nem mesmo seriam ajuizadas, não fosse a regra da inversão do onus probandi, que atua como verdadeiro mecanismo de libertação do consumidor, sujeito oprimido pelo mercado massificado de consumo.

É fundamental, para a plena eficácia dos direitos estatuídos pelo Código de Defesa do Consumidor, que seja conferida ao texto do art. 6º, VIII, interpretação que não o restrinja ou debilite.

Somente através da atribuição, ao texto legal, do sentido mais favorável ao consumidor estará sendo dada máxima efetividade ao comando constitucional que impõe a proteção do consumidor.[43]

Outras questões relacionadas com a inversão do ônus da prova mereceriam exame, tais como a relativa aos fatos sobre os quais se pode operar a inversão; a referente à possibilidade de a inversão se operar fora do âmbitos das relações de consumo, e tantas mais. Todavia, os limites naturais do presente trabalho exigem que se deixe a abordagem dessas outras questões para uma outra oportunidade. O debate em torno da mais adequada interpretação do artigo 6º, VIII, do CDC ainda se encontra em aberto.


Notas do texto:

[1] De acordo com o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.

[2] V., por todos, Cecília MATOS, para quem é necessário compreender: “o conceito de hipossuficiência como diminuição da capacidade do consumidor, não apenas sob a ótica econômica, mas também sob o prisma do acesso à informação, educação, associação e posição social.” (O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, vol. 11, p. 166).

[3] José Rogério Cruz e TUCCI observa que: “a hipossuficiência aí preconizada não diz com aspecto de natureza econômica, mas com o monopólio da informação.” (Código do Consumidor e Processo Civil. Aspectos polêmicos. Revista dos Tribunais, vol. 671, p. 35).

[4] Antonio GIDI. Aspectos da inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 13, p. 36.

[5] V. Tânia Lis Tozzoni NOGUEIRA. Direitos básicos do consumidor: a facilitação da defesa dos consumidores e a inversão do ônus da prova. Revista de Direito do Consumidor, vol. 10, p. 57. No mesmo sentido, Mirella D’Angelo CALDEIRA, para quem a inversão do ônus da prova não tem relação com a situação econômica do consumidor, mas: “visa a auxiliar aquele que não tem condições de sequer dialogar com o fornecedor, pois não entende ou nada sabe sobre o produto, não tendo subsídios para realizar provas que comprovem o seu direito.” (Inversão do ônus da prova. Revista de Direito do Consumidor. V. 38, p. 166).

[6] WATANABE, Kazuo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, p. 618.

[7] CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, p. 99.

[8] A verdade, para os céticos, é algo inalcançável pela razão humana; já para os relativistas não é possível falar na verdade, mas em uma verdade. A concepção relativista da verdade é elegantemente resumida por Georges Santayana: “A posse da verdade absoluta não se encontra apenas por acaso além das mentes particulares; é incompatível com o estar vivo, porque exclui toda situação, órgão, interesse ou data de investigação particulares: a verdade absoluta não se pode descobrir, justamente porque é uma perspectiva.” Los reinos del ser. Apud SAVATER, Fernando. As Perguntas da Vida, p. 40.

[9] WATANABE, Kazuo. Op. cit., p. 617.

[10] Cândido Dinamarco, comentando a regra do art. 335 do CPC, que cuida das regras de experiência comum, observa, agudamente: “Esse dispositivo, que não constitui sequer exceção à exigência de julgar segundo os autos, atua em campo diferente do art. 131 porque não diz respeito às fontes a serem consideradas no julgamento, mas aos raciocínios dedutivos a serem desenvolvidos por aquele que vai julgar – e esses raciocínios chamam-se presunções”. (Instituições de Direito Processual Civil, p. 106).

[11] Neste sentido, Mirella D’Angelo Caldeira, para quem, “havendo uma das duas situações, estará o magistrado obrigado a inverter o ônus da prova.” (“Inversão do ônus da prova”, Revista de Direito do Consumidor, vol. 39, p. 173).

[12] FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis, p. 140.

[13] WATANABE, Kazuo. Tutela antecipatória e tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. In: A Reforma do Código de Processo Civil, p. 30.

[14] Embora chegue a conclusões diversas das apresentadas no presente trabalho, Antonio Gidi também sustenta que o texto normativo em exame cuida de inversão legal: “não consideramos ser caso de inversão judicial do ônus da prova, mas de inversão legal. Com efeito, apesar de inúmeras posições em sentido contrário, temos que a inversão do ônus da prova não opera ope judicis, mas ope legis. Afinal, o papel do magistrado é meramente o de aferir a presença dos requisitos impostos pelo CDC.” (Aspectos da inversão do ônus da prova no Código do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor, vol. 13, p. 36).

[15] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2002, p. 189.

[16] POLETTI, Ronaldo. Introdução ao Direito, p. 287.

[17] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 35.

[18] Caio Mário da Silva PEREIRA. Instituições de Direito Civil, p. 135.

[19] Vejam-se outros exemplos em artigo de José Carlos BARBOSA MOREIRA: Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados. In: Temas de Direito Processual. Segunda Série, p. 64/65.

[20] Damásio de Jesus observa que: “nos elementos típicos normativos cuida-se de pressupostos do injusto típico que podem ser determinados tão-só mediante juízo de valor da situação de fato.” (Direito Penal, p. 240).

[21] Na visão de Andrei Zenkner SCHMIDT, a tripartição do tipo penal em elementos objetivos, subjetivo e normativos é insustentável, em razão da superação do paradigma da filosofia da consciência, pelo qual se crê, equivocadamente, que os textos legais possuam um sentido unívoco, aplicável a todos os fatos: “A bem da verdade, todo tipo penal é composto de elementares normativas pelo simples fato de que a adequação da conduta a uma norma não é resultado de uma subsunção mecânica, mas sim axiomática. Aquilo que a doutrina costuma chamar de elementares objetivas não passa de contextos lingüísticos cuja extensão é consensualmente delimitada e aceita pela comunidade jurídica. Bastaria o surgimento de um novo fato até então não discutido para que a demanda por um novo consentimento hermenêutico imponha-se.” (O princípio da legalidade penal no estado democrático de direito, p. 261).

[22] Celso Antonio BANDEIRA DE MELLO. Discricionariedade e Controle Jurisdicional, p. 22.

[23] Ibidem, p. 29.

[24] Como na hipótese em que o consumidor fosse um dos muitos operários que ganham um salário mínimo para sustentar a si e a família e litigasse contra uma pessoa jurídica de grande poder econômico, fornecedora de produtos ou serviços.

[25] A Inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, vol. 40, p. 86.

[26] Ibidem.

[27] Embora também possa gramaticalmente ser traduzido como “efeito de inverter-se”.

[28] Indo, talvez, para o Capítulo I, do Título III, que cuida da Defesa do Consumidor em Juízo.

[29] A Inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, vol. 40, p. 86.

[30] Preconiza o art. 154: “Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial.”

[31] Estabelece o art. 244: “Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.”

[32] O princípio da instrumentalidade das formas constitui inspiração, v. g., para os parágrafos 1º e 2º do art. 214 do CPC, os quais estabelecem que o comparecimento do réu supre a falta ou a nulidade da citação.

[33] Cf. Antônio Janyr DALL’AGNOL. Comentários ao Código de Processo Civil, 2000, p. 228.

[34] Antônio Janyr DALL’AGNOL. Comentários ao Código de Processo Civil, 1985, p. 434.

[35] Fábio GOMES. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 243.

[36] Por todos, Carlos Roberto Barbosa MOREIRA. Notas sobre a Inversão do ônus da Prova em Benefício do Consumidor. In: Revista de Direito do Consumidor, 1997, vol. 22, p. 145-148.

[37] Por todos, José Joaquim CALMON DE PASSOS. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 453.

[38] Reza o art. 19 do CPC: “Salvo as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até sentença final; e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito declarado pela sentença.”

[39] A despeito da dicção do art. 162, § 1º, do CPC. O que a sentença faz, na verdade, é por fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição.

[40] Por todos, Carlos Roberto Barbosa MOREIRA: “Em qualquer caso, o ato que deferiu ou indeferiu a inversão constituirá decisão interlocutória, impugnável por meio de agravo.” (op. cit., p. 148).

[41] A possibilidade de um provimento judicial gerar prejuízo constitui o critério que aparta a manifestação judicial recorrível (decisão interlocutória) da irrecorrível (despacho), como ensina Moniz de ARAGÃO: “Aí está uma solução hábil a superar a dificuldade com que se defrontará o intérprete brasileiro: todos os despachos que visem unicamente à realização do impulso processual, sem causar qualquer lesão ao direito das partes, serão de mero expediente. Caso, porém, ultrapassem esse limite e acarretem ônus ou afetem direitos, causando algum dano (máxime se irreparável), deixarão de ser de mero expediente e ensejarão recurso.” (Comentários ao Código de Processo Civil. 6ª ed. Rio de Janeiro : Forense. 1989. Vol. II, p. 66).

[42] A desnecessidade de prova inequívoca da alegação se dá, ainda, na hipótese de fatos notórios e em relação àqueles em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade (art. 334, I e IV, do CPC).

[43] Em especial aos artigos 5º, XXXII, e 170, V, da Constituição da República.


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Fonte: Escritório Online


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