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Escritório Online :: Artigos » Direito Tributário


A interpretação do fato gerador do ICMS diante da Lei Complementar 87 e da Súmula 166 do STJ

02/10/2006
 
Irapuã Gonçalves de Lima Beltrão



De todos os impostos previstos no atual Sistema Tributário Nacional, o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços – ICMS, sem dúvida, é aquele cuja exação enfrenta as maiores dificuldades para reconhecer-se o fato imponível, encerrando interpretações diversas para que ocorra sua incidência nas transações comerciais.

Dentre as lições mais comezinhas da análise tributária está a inevitável afirmação de que a primeira disciplina estrutural das espécies deve ser feita, sempre, através da Constituição, eis que o assunto caracteriza-se como materialmente constitucional. Por esta razão afirma-se que a definição do poder de tributar, suas limitações e repartições entre os entes políticos estarão necessariamente previstos em normas do texto político e, a partir de suas definições básicas, será produzida toda a legislação pertinente para a implantação dos tributos na vida social.

Por este motivo estrutural, a sistematização constitucional do Direito Tributário pátrio reconheceu a necessidade de uma “norma meio”, responsável pela ligação entre os ditames constitucionais e a lei de cada um dos tributos, elaborada pelo ente federativo competente in casu. Na forma do art. 146 CRFB, esta norma, além de ser dotada de natureza complementar com o correspondente quorum da maioria absoluta, é responsável pelo estabelecimento de normas gerais, sobremaneira pelo tratamento dos impostos discriminados na Constituição, definindo os respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.

Naturalmente, esta missão legislativa deve sempre buscar seu fundamento de validade no texto constitucional que o orienta, ou, como pontifica o Professor ROQUE CARRAZZA, “a lei complementar que está a merecer nossos cuidados só será válida quando se entrosar com as linhas mestras do Texto Supremo” (Curso de Direito Constitucional Tributário. SP, Ed. Malheiros, 1995, 7ª. Ed, p. 406).

Certamente, no cumprimento desta tarefa constitucional, deve o legislador complementar adotar máxima acuidade na disciplina das hipóteses de incidência dos impostos, por toda a sua importância para a matéria, conforme já há muito assinalado por AMÍLCAR FALCÃO (O fato gerador da obrigação tributária. RJ, Ed. Financeiras, 1964). Isto porque, ao descrever geral e abstratamente, o fato gerador da obrigação tributária deve fazê-lo de forma completa e perfeita, ou, na expressão do art. 114 do CTN, com os seus elementos suficientes e necessários para posterior caracterização, não causando dúvidas ao aplicador e ao intérprete da subsunção dos fatos àquela norma.

Neste ponto, o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços – ICMS já apresenta sua primeira dificuldade legislativa. Como se afirmou, a partir do previsto na Constituição, cabe à norma infraconstitucional disciplinar os fatos geradores, através de lei complementar (art. 146), que, no caso, do ICMS, encontrou ainda o reforço do art. 155, §2°, XII, exigindo uma coerente lei de maioria absoluta. Por tais dispositivos, o constituinte originário trouxe ainda outra função à lei complementar, destacando aquela necessidade de normas gerais de ligação, inclusive para os fins da legislação tributária.

Não se pretende aqui esmiuçar todas as funções da lei complementar no ICMS, mas, tão somente, sua missão quanto à definição do seu fato gerador e os problemas que já advém do exercício desta conceituação. Por óbvio, não há máxima liberdade nesta tarefa, eis que a sistematização existente estabeleceu, a priori, matrizes diretivas.

É de se destacar que, no momento de redigir tais hipóteses, o legislador complementar não pode jamais desconhecer os conceitos já existentes nos demais ramos do direito, notadamente ao usar os institutos do direito privado. Como já assinalava o art. 109 CTN, a integridade do Direito é única e as definições, conteúdos e alcances havidos nos institutos do Direito Privado devem sempre ser respeitados pelo legislador tributário.

Justificando esta “importação” dos institutos privados utilizados no Direito Tributário com observância da unicidade jurídica, o professor LUCIANO AMARO, recorre à doutrina clássica para pontuar “como assinala Becker, com apoio em Emilio Betti e Luigi Vittorio Berliri, o direito forma um único sistema, onde os conceitos jurídicos têm o mesmo significado, salvo se a lei a tiver expressamente alterado tais conceitos, para efeito de cada setor do direito” (Direito Tributário Brasileiro. SP; Ed. Saraiva, 2003, 9ª ed., p. 218).

Não por outro motivo, os primeiros passos no caminhar da ciência jurídica exigem o destaque para a linguagem do Direito, tanto assim que o saudoso Jurista MIGUEL REALE identifica, já para os iniciantes que, “para realizarmos, entretanto, esse estudo e conseguirmos alcançar a visão unitária do Direito, é necessário adquirir um vocabulário” (Lições Preliminares de Direito. SP, Ed. Saraiva, 2004, 27ª. Ed; p. 7). Ora, esta adoção de uma linguagem própria do campo jurídico, em nome do princípio constitucional da segurança jurídica, deve ser única, assegurando aquela existência unitária defendida pelo renomado Professor.

Mesmo ao buscar uma visão didática do estudo de qualquer ramo jurídico, através da separação histórica entre o Direito Público e o Direito Privado, todos os autores são concordes em afirmar a unicidade do Direito, como ilustra o eminente Professor JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO: “o estudo moderno do Direito não mais comporta a análise isolada e estanque de um ramo jurídico. Na verdade, o Direito é um só; são as relações jurídicas que podem ter diferente natureza” (Manual de Direito Administrativo. RJ, Ed. Lumen Júris, 2006, p. 7).

Exatamente para preservar situações como estas, as normas codificadas previram a necessidade de respeito aos limites do predomínio do Direito Privado no que tange ao exercício do poder de tributar. Ou, nas inspiradoras palavras de ALIOMAR BALEEIRO, “para maior clareza da regra interpretativa, o CTN declara que a inalterabilidade das definições, conteúdo e alcance dos institutos, conceitos e formas do Direito Privado, é estabelecida para resguardá-los no que interessa à competência tributária. O texto acotovela o pleonasmo para dizer as ´definições´ e limites dessa competência, quando estatuídos à luz de Direito Privado, serão as deste, nem mais, nem menos” (Direito Tributário Brasileiro. RJ, Ed. Forense, 2000, 11ª. Ed., p. 688).

Assim, as normas codificadas ainda detalham mais, vedando ao legislador tributário, no momento das definições dos efeitos fiscais (art. 110 CTN), a adoção de qualquer conceito distinto daqueles já havidos no campo privado, sob o argumento lógico de que, se tal ocorresse, estar-se-ia diante de uma deturpação clara do escopo e da amplitude constitucional ao definir as linhas preliminares da tipificação dos impostos.

Esta solução encontrada pelas normas gerais do Direito Tributário mereceu reconhecimento de sua efetividade no processo de interpretação dos tributos e demais institutos, não só entre os tributaristas pátrios, mas também alhures, como se destaca na obra de ANTÔNIO BRAZ TEIXEIRA (Princípios de Direito Fiscal. Coimbra, Ed. Almedina, 1985, 3ª. Ed, p. 134/135) que, ao analisar a mesma situação, refere-se à lei brasileira com entusiasmo. Assim, ao se deparar com a questão de “quando nas normas fiscais empregam termos próprios de outros ramos do direito ou designativos de conceitos neles gerados”, critica o autor português a solução daquele país que permite a eventual atribuição de significado diferente, sugerindo que o melhor seria adotar a solução brasileira, igualmente existente naquele momento na lei espanhola.

Por justificativas históricas, esta sistemática para a adoção ou não dos conceitos próprios já existentes no Direito Privado deu-se em razão da necessidade de afirmação ou não da autonomia do Direito Tributário, como ramo autônomo da ciência jurídica. Toda esta discussão não é particular do Direito nacional. Foi marcante, na segunda metade do século passado, quando, em diversos países, houve preocupação quanto a afirmação da autonomia daquele, notadamente em relação ao Direito Privado. O Professor GIULIANI FONROUGE testemunha este debate e as várias soluções adotadas pelos diversos ordenamentos, concluindo que “algunos códigos tributarios – por ejemplo, Peru, Brasil y Modelo OEA/BID – no que se refirem explicitamente al derecho privado para dejar mayor latitud al intérprete; outros ordenamientos, em cambio, como la Ley General Tributaria de Espana (art. 9, punto2) y el Código Mejicano (art. 12) asignam carácter supletorio al ´derecho común´, usando la terminologia errónea que acabamos de criticar, pues las normas de derecho financeiro no son excepcionales...” (Derecho Financeiro. Buenos Aires, Ed. Depalma, 1993, 5ª ed., vol. I, p. 71/72).

Em verdade, se naquele momento anterior, a questão pendia para a autonomia, ou não, dos ramos do Direito, o imbróglio atual diz respeito a uma adequada e segura interpretação. Por isto, tal disposição nas normas codificadas se justifica ainda pelo espírito didático existente naquele diploma, sendo razoável concluir que, mesmo que inexistisse tal previsão, somente poderia a tributação seguir o que ali está consignado, de forma a manter a unicidade da matéria jurídica.

De tal sorte, para que não houvesse dúvidas na hermenêutica e aplicação das leis tributárias, as normas codificadas definiram a questão, orientando que a exegese da norma não poderia, a despeito de sua interpretação, ganhar uma força construtiva. Neste ponto, lição hialina ocorreu, já na vigência da atual Constituição, quando a mais alta corte do país, analisando a argüição de inconstitucionalidade de contribuição tributária afirmou:

INTERPRETAÇÃO - CARGA CONSTRUTIVA - EXTENSÃO. Se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação a ordem jurídico-constitucional. O fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo com a formação profissional e humanística do intérprete. No exercício gratificante da arte de interpretar, descabe "inserir na regra de direito o próprio juízo - por mais sensato que seja - sobre a finalidade que "conviria" fosse por ela perseguida" - Celso Antonio Bandeira de Mello - em parecer inédito. Sendo o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, mas não este aquele. CONSTITUIÇÃO - ALCANCE POLÍTICO - SENTIDO DOS VOCÁBULOS - INTERPRETAÇÃO. O conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos acadêmicos quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios.” (STF – Pleno; RE 166.772-9-RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO MELLO, j. em 12/05/1994, publ. DJU de 16/12/1994, p. 34.896; Ement. Vol. 1771-04 pp. 703 RTJ Vol. 00156-02 pp. 666)

Esta complexa compatibilização entre o instituto privado existente no núcleo do fato gerador e as previsões tributárias sempre representou o ponto nodal da definição do ICMS, já que a hipótese de incidência derivará necessariamente da definição, conteúdo e alcance de mercadoria, que advém da atividade mercantil, dos conceitos de mercado e dos atos ali praticados. Assim, toda a interpretação sobre os designos da hipótese de incidência deve guiar-se pelas regras de entrelaçamento entre o Direito Tributário e o Direito Privado, ex vi o contido nos arts. 109/110 do CTN.

Tanto é assim que o Professor HUGO DE BRITO MACHADO ao ilustrar aqueles citados arts. 109/110 do CTN, recorre a tal situação, exemplificando com o imposto estadual: “Se a Constituição fala de mercadoria ao definir a competência dos Estados para instituir e cobrar o ICMS, o conceito de mercadoria há de ser o existente no Direito Comercial. Admitir-se que o legislador pudesse modificá-lo seria permitir ao legislador alterar a própria Constituição Federal, modificando as competências tributárias ali definidas” (Curso de Direito Tributário. SP, Ed. Malheiros, 2006, 27ª ed., p. 130).

Este cenário já havia sido debatido anteriormente em face da exigência da contribuição do COFINS, sendo que, ali, o egrégio SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA já tivera oportunidade de cimentar os cuidados da carga interpretativa sobre os institutos de Direito Privado, especialmente do conceito de mercadoria, a que o Direito Tributário aproveita, como ilustra o seguinte arresto:

“Mercadoria é bem móvel. O COFINS não incide sobre bens imóveis. A Lei tributária não pode ignorar ou desvirtuar os institutos de Direito Privado.” (STJ – 2ª. Turma, REsp 179723/MG, por maioria, Rel. Min. HELIO MOSIMANN, rel. para acórdão Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, j. em 09/03/1999, publ. DJU 02/05/2000, RDR 18/256; RET 14/60; RJADCOAS 9/101)

Neste ponto residiu um dos grandes problemas jurídicos da Lei Complementar n° 87, de 1996, que, apesar de buscar a normatização de forma clara grande parte das matérias do tributo, acabou por estabelecer alguns pontos bastante controvertidos ou, pelo menos, adotou redação que permite dupla interpretação. Dentre estes pontos polêmicos, destaca-se o art. 12, I da LC n° 87/96 ao afirmar: “Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento: I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular;”.

Ora, várias pessoas jurídicas que centralizavam suas operações em torno da sede empresarial passaram a ter inúmeras dificuldades práticas, inclusive no deslocamento daqueles bens que faziam parte do seu ativo fixo que precisavam ser distribuídas entre as várias filiais ou estabelecimentos.

A utilização do deslocamento físico como ponto nuclear do fato gerador do ICMS pode até mesmo permitir uma maior facilidade prática para a tributação e sua fiscalização. Mas certamente a expressão “circular mercadoria” não pode ser resumida ao conceito físico. Várias situações servem para ilustrar a impossibilidade desta redução. Uma pessoa, que muda com seus bens, os circula fisicamente. Todavia, impossível reconhecer-lhes a natureza de mercadoria, já que aquele não goza da qualidade de comerciante. Por outro lado, pessoa nesta condição pode realizar compra e venda mercantil, mantendo as mercadorias ainda armazenadas ou estocadas, no mesmo local primitivo, mas operando a tradição para o novel proprietário.

Na verdade, as autoridades administrativas deveriam buscar o elemento jurídico que qualifica a operação mercantil, atrelando aqueles métodos de interpretação estampados nas normas gerais codificadas.

Para agravar ainda mais a situação, os agentes fiscais de algumas unidades federativas extrapolavam qualquer razoável interpretação, valendo-se, para tanto, do contido no Art. 2° § 2º da citada Lei Complementar n° 87 que estampa: “A caracterização do fato gerador independe da natureza jurídica da operação que o constitua”.

A combinação exagerada destes dispositivos refletiu numa verdadeira extrapolação da história do ICMS, seja pelo legislador na hora de disciplinar as hipóteses de incidência dos tributos, seja pelos intérpretes e aplicadores de alguns Estados. Para alguns, se a LC n° 87/96 pretendeu dizer que qualquer movimentação física, ainda que não fruto de um negócio jurídico mercantil, deveria pagar ICMS, houve ali o excesso. Por diversas vezes, ainda que considerado o tempo de elaboração, houve a necessidade de busca dos elementos já previstos no Código Comercial de 1850, que caracterizavam a compra e venda mercantil, notadamente para reconhecer que não bastaria a mera transferência física de lugar.

A verdade é que o entendimento do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA veio, fruto de vários antecedentes jurisprudenciais, para corrigir estas extrapolações. Em hipótese nenhuma, a tributação poderia chamar o mero deslocamento físico de uma circulação de mercadoria. Tal orientação esqueceria por completo o art. 109 e, com isto, descumpre o art. 110, ambos do CTN. Para a correta aplicação da tributação deve ser respeitado o conceito mercantil apurado no direito privado, sendo que recentemente o STJ vem afirmando a “inocorrência do fato gerador da obrigação tributária no simples deslocamento de mercadoria, se não houve circulação econômica para fins de transferência de propriedade” (AgRg no Ag. 642229, j. em 2005).

Desprezando a orientação das normas gerais e da mais saudável doutrina, a atuação fiscal tem ido além do que a ela se permite. O curioso é que a discussão não representa novidade introduzida pela LC n° 87/96, mas sim fruto de debate ainda sobre os dispositivos constantes no antigo Decreto-lei n° 406, de 1968, que, através da recepção, cumpriu as funções da lei complementar até aquele ano de 1996. Analisando a sistemática havida ainda na vigência da norma anterior, o STJ teve logo oportunidade de exigir a existência de um elemento mercantil, ao afirmar que “o simples deslocamento da mercadoria pelo seu proprietário, sem implicar circulação econômica ou jurídica, não legitima a incidência do ICM” (REsp 9933, j. em 1992).

Os julgados denotam todo o potencial exagero havido na tributação, não sendo concebível que uma determinada pessoa, seja física ou jurídica, ao transportar seus bens para outros estabelecimentos seus, estaria incorrendo no fato gerador do imposto. Uma perfunctória perquirição entre os caracteres distintivos entre os conceitos dos “bens jurídicos” e de “mercadoria” nortearia uma boa atuação tributária. Há muito, já indicava o Mestre FRAN MARTINS que “chamam-se mercadorias as coisas que comerciantes adquirem com a finalidade específica de revender” (Curso de Direito Comercial. RJ, Ed. Forense, 1998, 22ª. ed., p. 473).

A própria doutrina especializada do Direito Comercial sempre destacou a imperiosa busca do elemento qualificador das mercadorias em relação ao conceito de bens jurídicos, inclusive para a atribuição do posterior efeito tributário. No escólio de WALDIRIO BULGARELLI, “em relação aos bens móveis é necessário atentar para o conceito de mercadoria, que engloba esses bens, enquanto objeto de circulação econômica; o que toma especial oportunidade, em face da sistemática tributária brasileira, que consagrou um tipo de tributo, o ICM, justamente sobre a circulação de mercadorias” (Contratos Mercantis. SP. Ed. Atlas, 1995, 8ª ed., p. 170).

Já na doutrina clássica, e sempre atual, de CARVALHO DE MENDONÇA, encontramos as linhas para diferenciar as mercadorias. “As coisas móveis, consideradas como objeto de circulação comercial, tomaram o nome específico de mercadoria. A mercadoria, está, portanto, para a coisa, como a espécie para o gênero. Todas as mercadorias são necessariamente coisas; nem todas as coisas, porém, são mercadorias. Não há, como se vê, diferença de substância entre coisa e mercadoria; a diferença é a destinação. Tudo que pode ser objeto de comércio, vendido ou locado é mercadoria. Mercadoria é coisa comercial, por excelência, na frase de Vidari. Nesse sentido, fala-se em mercar, isto é, comprar e vender, especular, e de mercancia, significando mercadoria” (Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Campinas. Ed. Russel, 2006, vol. V,p. 28).

Toda esta linha definidora pela destinação estava, inclusive, apontada pela jurisprudência consolidada do Eg. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL que, repudiando exageros anteriores, editou a Súmula 573 afirmando que “não constitui fato gerador do ICM a saída física de máquinas, utensílios e implementos a título de comodato”. Ainda que, tratando diretamente sobre uma hipótese específica da movimentação de coisas móveis para empréstimo, os fundamentos daquela orientação do corte norteavam para a impossibilidade de tributação no mero deslocamento físico, exigindo aquele outro elemento de caracterização mercantil para a ocorrência do fato gerador do imposto estadual.

Todavia, ainda assim houve a necessidade de intervenções judiciais para manutenção da estrutura lógica daquela exação. Por outro lado, a inexistência desta interpretação sistemática dos institutos jurídicos e o próprio respeito aos arts. 109/110 do CTN continuou exigindo forte repreenda dos Tribunais após a Constituição de 1988, como novamente se ilustra pelo Superior Tribunal de Justiça: “a simples movimentação de matéria-prima do estabelecimento matriz para a filial do mesmo contribuinte, como fase preparatória de manufatura, sem tipificar ato de mercancia (ato mercantil), por si, não legitima a incidência do ICM” (REsp 9916, j.em 1993).

A verificação jurisprudencial sobre os fatos geradores e a necessidade de correção dos excessos cometidos pelo legislador e pela atuação fiscal resultou na edição em 1996 da Súmula 166 pelo STJ afirmando: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadorias de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.

Ora, não há dúvidas de que a exegese daquele artigo 12, I da LC n° 87, de 1996, deve ser guiada vis a vis a tais critérios informadores, mesmo porque reconhecidos no entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça. Outrossim, mesmo depois da publicação do enunciado, as situações concretas do referido imposto na prática das empresas e na realidade empresarial continua recebendo novos casos para análise, não raro sendo necessária orientação específica. Nesta esteira, exemplifica-se outra decisão da corte superior no sentido de que “ainda que para ser utilizada como matéria prima, não caracteriza operação mercantil sujeita à incidência de ICMS” (AgRg no REsp 251925, j. em 2001).

Contudo, nos casos concretos a prevalência irrestrita da Súmula deve ser adotada com muito cuidado e cautela, pois, a princípio, poderia facilitar a sonegação e a evasão. Há registros claros de contribuintes, que, para disfarçar operações tributadas de circulação de mercadoria, marcaram a transferência mercantil através de pretensos mero deslocamentos entre filiais ou envolvendo estabelecimentos e a sede empresarial. Certamente esta representa uma das razões pelo qual tal hipótese não foi ainda retirada da lei, mesmo sabendo que todos que reclamaram os excessos de interpretação tributária perante o Poder Judiciário ganharam a causa em questão. Ademais, releva-se a documentação adequada e completa no cumprimento dos deveres instrumentais, de modo a retratar a realidade da operação sub examen.

Por outro lado, a mera imposição de diversas obrigações acessórias jamais será suficiente para aclarar a problemática existente no fato gerador do ICMS. A saída única para uma adequada e acertada aplicação da lei tributária está na adoção do Princípio da Razoabilidade diante de cada caso concreto, exigindo, por via de conseqüência última, racionalidade dos agentes fazendários envolvidos.

Toda esta questão foi bem sintetizada pela Eminente Jurista MISABEL DERZI que, ao anotar a festejada obra de ALIOMAR BALEEIRO, pontua: “quando a Constituição usa um conceito, um instituto ou forma do Direito Privado, o nome empregado denota certo objeto, segundo a conotação que ele tem na ciência jurídica particular, da qual se origina. A conotação completa que advém da ciência do Direito Privado é condição prévia de inteligibilidade e univocidade do discurso constitucional. E se utiliza a Constituição desse sentido completo, extraído de certo ramo jurídico, para assegurar a discriminação e delimitação de competência, enfim o pacto federativo. Permitir ao intérprete ou ao legislador ordinário interessado (que legisla em causa própria) que alterasse o sentido e alcance desses institutos e conceitos constitucionalmente empregados, seria permitir que firmasse, sem licença da Constituição, novo pacto federativo, nova discriminação de competência. Sendo assim, o art. 110 do CTN determina a cristalização da denotação e da conotação jurídica daqueles institutos, conceitos e formas, vedando-se ao legislador tributário a alteração de sentido que é própria do Direito Privado. O art. 110, implicitamente, semente dita o comando: obedeça-se à Constituição” (notas de atualização in Aliomar Baleeiro. Direito Tributário Brasileiro. RJ, Ed. Forense, 2000, 11ª. Ed., p. 690).

No fundo, apesar de sumulado por duas vezes e dos conceitos teóricos serem hialinos, cumpre aos operadores do Direito, notadamente aqueles com munus constitucional para assegurar o efetivo cumprimento das demais funções estatais, diligenciar para que tais excessos sejam coibidos na prática fiscal. Os agentes fazendários de fiscalização estarão limitados na sua atuação, dada o caráter vinculado de sua atividade (art. 3°, in fine, c/c art. 142, parágrafo único, do CTN) que, a pretexto de afastar discricionariedades, retira daqueles a capacidade decisória de interpretação para os casos concretos.

Resta-nos a esperada razoabilidade dos regulamentos de orientação da atuação fiscal que, se ainda mantiverem os mesmos vícios acima apontados, estarão maculados pela pecha da ilegalidade. E, na ausência destes, apenas os comandos do judiciário e demais órgãos de controle poderão orientar a sociedade no caminho da moralidade, da melhor interpretação e do respeito constitucional.


Referências Bibliográficas:


- Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. SP; Ed. Saraiva, 2003, 9ª ed., p. 218

- Baleeiro, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. RJ, Ed. Forense, 2000, 11ª. Ed., p. 688

- Bulgarelli, Waldirio. Contratos Mercantis. SP. Ed. Atlas, 1995, 8ª ed., p. 170

- Carrazza, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. SP, Ed. Malheiros, 1995, 7ª. Ed, p. 406

- Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. RJ, Ed. Lumen Júris, 2006, p. 7

- Falcão, Amílcar de Araújo. O fato gerador da obrigação tributária. RJ, Ed. Financeiras, 1964

- Fonrouge, Carlos M. Giuliani. Derecho Financeiro. Buenos Aires, Ed. Depalma, 1993, 5ª ed., vol. I, p. 71/72

- Machado, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. SP, Ed. Malheiros, 2006, 27ª ed., p. 130

- Martins, Fran. Curso de Direito Comercial. RJ, Ed. Forense, 1998, 22ª. ed., p. 473

- Mendonça, José Xavier Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Campinas. Ed. Russel, 2006, vol. V,p. 28

- Reale, Miguel. Lições Preliminares de Direito. SP, Ed. Saraiva, 2004, 27ª. Ed; p. 7

- Teixeira, Antônio Braz. Princípios de Direito Fiscal. Coimbra, Ed. Almedina, 1985, 3ª. Ed, p. 134/135

Fonte: Escritório Online


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